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A banalidade da ultraviolência

Por Pedro Pedrossian Neto (*) | 25/04/2014 08:36

A nona sinfonia de Beethoven, de acordes pujantes e opressivos, estampa o filme. O ano da produção é 1971 e o aclamado longa-metragem do diretor Stanley Kubrick, Laranja Mecânica, narra a história de um grupo de jovens delinquentes numa Inglaterra futurista e pós-moderna.

O gosto pela violência gratuita, o traço perverso adolescente, a vontade em fazer o mal e misturá-lo ao cotidiano, caracterizam a cultura vivida com intenso prazer pelos protagonistas, que são responsáveis por perpetrar os mais diversos crimes sem-causa. A ficção, realista e estranha, surgiria como uma metáfora dos novos tempos e da nova cultura que ganhariam força nos anos seguintes.

O filme de Kubrick é uma crítica aguda à sociedade anglo-americana do pós-guerra, mas não só a ela, mas também às sociedades que, tal como as nossas, emergiram em sua inspiração no Ocidente: pretensamente civilizadas, organizadas pela lei, regidas por uma moral harmoniosa e benevolente.

A provocação de Laranja Mecânica, a sua sátira social, é revelar justamente o inverso do que as sociedades ditas “civilizadas” proclamam: na verdade ainda seriam inexplicavelmente bárbaras, com uma lei insuficiente para lidar com os novos distúrbios psico-sociais e, mais claramente, amarradas a uma perigosa cultura de veneração à violência.

Nas décadas seguintes até os dias de hoje, o cinema norte-americano iria consolidar o estilo que o fez ganhar o mundo: a cada nova safra de diretores, mais sangue, morte, crime, transgressão, etc. Surgiriam os filmes de guerra, do soldado glorificado que, como Rambo, dizima sem piedade centenas de inimigos vietnamitas com implacável metralhadora; ou a narrativa do heroico gladiador romano que estraçalha com sua maça ou picota com a lâmina da espada as vísceras do adversário. Tudo regado a refrigerante e pipoca.

Faria sucesso, ainda, a história do garoto comum, que uma vez tornado ninja pelo treinamento escrupuloso de um velho chinês, vinga com tintas vermelhas a honra da namorada violentada; ou a “lenda-urbana” do grupo de jovens ricos e universitários que saem de férias para acampar e, um a um, são mortos da forma mais criativa e inusitada possível; do assassino serial que tortura por motivo fútil a vítima agonizante e impotente em longas cenas de desespero, amputações, etc; do policial justiceiro que luta solitário contra o sistema corrupto e passa fogo a esmo na bandidagem, sob aplausos da consciência. A lista de horrores tornados banais pela cultura contemporânea é enorme...

Penso que o cinema e a tevê não somente “criam”, mas “resgatam” do inconsciente coletivo tais histórias, projetando-as numa ficção comercial. Faz sucesso o filme que melhor capta este sentimento do público, ou melhor, torna-o personagem oculto e cúmplice de tudo o que secretamente gostaria mas, em condições normais da lei e da moral, não pode fazer.

Chegamos, não pelo cinema, mas pelas contradições do nosso tempo cristalizadas na cultura, numa sociedade que banaliza a ultraviolência. Ela, no entanto, é a resultante de uma série de outras violências banalizadas e desprezadas, mas que não obstante brotam, como um vulcão vingativo, de tempos em tempos para reorganizar a superfície aparentemente calma que as esconde.

A violência do dinheiro, ou melhor, a violência de não se ter dinheiro, e assim reprimir a todo momento a própria vontade em meio a abundancia; a violência de uma ordem social hierárquica, rígida e injusta, que tem na exclusão o motor de seu progresso; a violência, inerente a ao enfraquecimento da instituição familiar, de ser colocado socialmente cada vez mais como indivíduo; a loucura agitada das grandes metrópoles, a suave violência de ser mais um, qualquer um, alguém cuja vida ninguém se importa, senão quando um crime hediondo ironicamente a resgata de sua “ninguendade” publicando o seu fim num jornal.

Sem resolver estas questões, a sociedade contemporânea contentou-se em apostar na única política que se apresenta minimamente possível: o fortalecimento das instituições disciplinares da polícia ou da justiça, o aumento da punição, a redução da oferta de armas, etc. Estas políticas, embora razoáveis nos “marcos da normalidade”, lidam apenas com o “velho crime”, mas não podem dar conta da sofisticada perversão impregnada na cultura.

A política de segurança pública, por mais eficaz que seja, é incapaz de impedir a tirania daquele que vinga o bulling atirando indistintamente nos colegas. Ela é incapaz de nos proteger por completo da sandice do terrorista suicida que explode (por causas políticas ou religiosas) e leva com ele centenas de pessoas num voo comercial.

Ela é insuficiente, e sempre será, contra o sequestrador que aprisiona uma menina por uma década no porão para fazê-la escrava sexual. Ela nunca poderá dar conta da perversão de um pai e de uma madrasta que jogam uma menina do alto de um prédio, ou aplicam injeção letal ao garoto rejeitado, ou ainda da sociopatia da menina rica e bem-criada que manda matar a pauladas os pais que dormem, inocentes, no quarto ao lado. Kubrick não inventou a ultraviolência, apenas escancarou a sua moderna banalidade. Quem sabe como cura-la?

(*) Pedro Pedrossian Neto é mestre em economia política e professor da PUC-SP.

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