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A incrível ousadia de nos orgulharmos da nossa vergonha

Tiago Duque (*) | 26/11/2016 09:21

Já é de conhecimento geral que as pessoas não heterossexuais ou não coerentes com o gênero atribuído ao seu “sexo biológico” têm, em diferentes países, e sob variados regimes de governo, se colocado em marcha pelas ruas de grandes e pequenas cidades em nome dos direitos de ser diferente em termos de corpo, gênero e sexualidade.

Qualquer análise não muito profunda das imagens transnacionais do que se convencionou chamar de “Parada do Orgulho Gay” (que no Brasil tem sido reforçada como “Parada do Orgulho LGBT” ou “Parada da Cidadania LGBT”, isto é, de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) aponta para diferentes grupos de pessoas. Alguns, por exemplo, reivindicando causas mais assimilacionistas (ter os mesmos direitos que os/as heterossexuais), e outros lutando por direitos não assimilacionistas (novos direitos para uma sociedade que ainda não existe, nem para LGBT, tampouco para os/as heterossexuais mais convencionais).

Isso não é nada novo. Estudos mostram que, desde a origem do movimento homossexual no Brasil, (antes as identidades políticas não eram LGBT, as diferenças, comumente, “cabiam” dentro da categoria “homossexual”) já havia os/as “militantes respeitáveis” e as “bichas loucas”, estas últimas, propondo pautas que esculhambavam o estilo tido como mais sério de muitos/as ativistas.

Elas, hoje classificadas, por exemplo, como “pintosas” ou “machorras”, nos ensinam que aqueles/as que são “imorais” não precisam se tornar moralmente aceitos/as para ter direitos. É uma lógica que reivindica “vidas possíveis” para modos de ser “impróprios”, “inadequados”, “não-normais”, “não saudáveis”, “perigosos”, “inconvenientes” e “esquisitos” diante dos moralismos em termos de gênero e sexualidade. Esclareço que isso não é o mesmo que defender atitudes e práticas criminosas do ponto de vista legal.

Sendo assim, o orgulho não é de ser “normal”, ainda que meio diferente. Nem mesmo de ser parte de uma “diversidade”, supostamente, “natural” da humanidade. Não se trata de uma busca de reconhecimento pela igualdade, mas de múltiplas formas de ser reconhecido/a e não ter a vida sob ameaça constante por ser “inapropriado” ou radicalmente diferente. Portanto, o orgulho não é simplesmente de ser o que se está sendo, mas é de ser motivo de vergonha para os/as mais autoritários/as e conservadores/as, inclusive os/as da própria “comunidade LGBT”.

O mesmo ocorre com a Cidadania. Alguns vão reivindicar que não se trata de ter apenas os mesmos direitos, mas direitos diferentes para projetos de vidas diferentes. Mais do que ter as mesmas garantias legais, que é justo, reivindica-se a legalidade da diferença, e não apenas da igualdade.

A implicação política desse grupo mais radical é, por exemplo, que ninguém deveria precisar se dar o respeito para ter direitos, porque, afinal, ser respeitável, muitas vezes, é deixar de ser realmente diferente, é se encaixar nas expectativas moralizantes que não servem nem mesmo para muitas pessoas tidas como “normais”. Ou uma Cidadania não idealizada na heterossexualidade e seus privilégios, mas na diversidade sexual não heteronormativa.

Na tarde de hoje, a capital do nosso estado, irá ter a oportunidade de se juntar a estes grupos, tanto os/as dos/as que reivindicam a ampliação dos direitos das pessoas tidas como heterossexuais e as de gênero supostamente coerente com o dito “sexo biológico” para as pessoas LGBT, como daqueles/as que compõem os grupos mais “escandalosos” em termos de reivindicação política. Ocorrerá a XV Parada da Cidadania LGBT de Campo Grande, a partir das 15h, na Praça Ary Coelho!

Em tempos sombrios para a nossa jovem democracia e nossos direitos sociais já garantidos (os trabalhistas, os da saúde e até os da educação), contra tantas atitudes autoritárias e golpes políticos, jurídicos e midiáticos, precisamos mesmo é ocupar. Portanto, se faz necessário engrossar essa marcha, seja qual for o lado que você está ou se identifique (isto é, assimilacionista ou mais radical, ou uma mistura dos dois, por que não?), mesmo não sendo LBGT.

A política do escândalo, por sua vez, parece-me mais potente, ainda que as duas sejam legítimas e necessárias. Porque, como sabemos, são as pessoas menos moralmente aceitas, dentre aquelas tidas como mais diferentes, que tem corrido mais risco de vida.

Temos que pensar e construir uma sociedade que reconheça gêneros e sexualidades para além do casamento monogâmico, da religião como lei acima da Constituição laica, da exclusividade da ideia de família com filhos, do corpo padronizado para ser desejável, da caretice do sexo só vinculado ao amor romântico, da violência que sofrem os homens efeminados e as mulheres masculinizadas, da repulsa contra as travestis que se prostituem na rua e de tantas outras experiências que merecem ser vividas, ainda que não sejam nada parecidas com a sua.

(*) Tiago Duque é bicha e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Coordenador do Impróprias – Grupo de Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Diferenças (UFMS/CNPq).

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