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A organização criminosa no Brasil

Por Carlos Magno Couto (*) | 12/09/2015 10:52

Folheando os pergaminhos da memória criminal no Brasil, avista-se que as origens históricas do crime organizado tiveram início com o chamado cangaço, que ficou escrito no solo seco dos sertões de Pernambuco, Alagoas, Paraíba, Ceará, Bahia, Rio Grande do Norte e Sergipe, entre o final do século XIX e começo do século XX. Personificado na lendária figura de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, que recebeu de Cícero Romão Batista, o Padre Cícero, em Juazeiro, o posto de Capitão.

Lampião, era filho de José Ferreira da Silva e Maria Lopes de Lima, nascido por volta de 1900, em Vila Bela, atual Serra Talhada, no sertão de Pernambuco e morto às margens do rio São Francisco, numa grota da fazenda Angicos, em Sergipe, por soldados de uma volante comandada pelo tenente João Bezerra, no amanhecer sangrento do dia 28 de julho de 1938. Ele que desde 1920, na companhia da baiana Maria Déa Neném, conhecida por Maria Bonita, neta de um jagunço que defendeu Antônio Conselheiro, a frente de um bando de cangaceiros, matou, roubou, violou e incendiou com a boca de seu rifle a vastidão da caatinga e o semi-árido. Teve 4 irmãos e 3 irmãs. Os irmãos Antonio, Ezequiel (Ponto-Fino), Livino e João. Os três primeiros e o pai foram mortos no terror do sertão.

Para o professor Eduardo Araujo da Silva, os cangaceiros tinham organização hierárquica e com o tempo passaram a atuar em várias frentes ao mesmo tempo, dedicando-se a saquear vilas, fazendas e pequenas cidades, extorquir dinheiro mediante ameaça de ataque e pilhagem ou sequestro de pessoas importantes e influentes para depois exigir resgates. Para tanto, relacionavam-se com fazendeiros e chefes políticos importantes e contavam com a colaboração de policiais corruptos que lhes forneciam armas e munições.

Com o correr do tempo e a institucionalização progressiva da criminalidade organizada que se seguiu, imune aos meios tradicionais de investigação contemporânea, o Estado brasileiro editou a Lei n. 12.850, de 2 de agosto de 2013, que definiu finalmente uma conceituação de organização criminosa e criou entre outras providências o tipo penal incriminador, com pena de reclusão de três a oito anos, e multa, visto que a única forma de criminalizar a “associação criminosa” era pelo quadro tipológico penal da “quadrilha ou bando” do artigo 288 do Código Penal, passando agora a ser descrita como a associação de 4 ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 anos, ou que sejam de caráter transnacional. Nas mesmas penas incorre no tipo penal de obstrução à justiça, quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa, sendo a pena agravada para quem exerce o comando, individual ou coletivo, ainda que não pratique pessoalmente atos de execução.

Essa lei ainda disciplina os meios de busca da prova, sem prejuízo de outros já previstos em lei, tais como a delação premiada, a captação ambiental, a ação controlada, por exemplo, pelo retardamento legal da intervenção policial à ação praticada pela organização, o acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos públicos e privados, a infiltração de agentes policiais em atividades de investigação e a cooperação entre órgãos governamentais, além da interceptação de comunicações telefônicas e o afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal.

Valendo ressaltar, que o juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: A identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas; a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas.

Em qualquer caso, a concessão do benefício levará em conta a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração, podendo o Ministério Público deixar de oferecer denúncia se o colaborador, não for o líder da organização criminosa e for o primeiro a prestar efetiva colaboração. Por fim, vale anotar que nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador, da mesma forma, que a confissão, não constitui prova plena de culpabilidade. Instituto esse, que também é premiado, como circunstância atenuante.

Guilherme de Souza Nucci, sobre o assunto, em sua obra Organização Criminosa, indaga se é legítima e aceitável essa forma de incentivo legal à prática da delação? uma vez que oficializa-se por lei, a traição, forma antiética de comportamento social, ferindo a proporcionalidade na aplicação da pena, em manifesta barganha do Estado com a criminalidade, num nítido estímulo a delações falsas e um incremento de vinganças pessoais, para, afinal, reconhecer a sua legitimidade e aceitabilidade no âmbito penal, como um mal necessário, considerado o arrependimento do delator, de modo a emergir o prêmio em lugar da pena, visto que, a regeneração do ser humano torna-se o elemento fundamental. Em suma, para Nucci, a colaboração premiada é um instrumento útil e aplicável, tal qual a interceptação telefônica, que fere a intimidade em nome do combate ao crime.

Como se vê, trata-se a delação de tema jurídico complexo, notadamente no que diz respeito a adequação desta medida no âmbito da criminologia e da política criminal e, até mesmo de uma aventada inconstitucionalidade.

Para Eugênio Raúl Zaffaroni, voz lúcida de penalista de verdade, que se ouve e se respeita, porque provinda de um “titã da integração humanista da Ciência Penal na América Latina”: “A impunidade de agentes encobertos e dos chamados “arrependidos” constitui uma séria lesão à eticidade do Estado, ou seja, ao princípio que forma parte essencial do estado de Direito: O Estado não pode se valer de meios imorais para evitar a impunidade(...). O Estado está se valendo da cooperação de um delinquente comprada a preço de sua impunidade, para “fazer justiça”, o que o Direito liberal repugna desde os tempos de Beccaria”.

Inobstante o eixo argumentativo desenvolvido por Zaffaroni, em bom rigor, vale recordar, que tal instituto, já é previsto em diversas leis de nosso ordenamento penal, ainda que sob requisitos diferentes, inclusive, no artigo 6°, da revogada Lei n. 9.034/95, que cuidava do Crime Organizado), no artigo 16, Parágrafo único, da Lei 8.137/90 (Crimes Tributários), no artigo 159, § 4°, do Código Penal (Extorsão mediante sequestro), artigo 8°, da Lei 8.072/90 (Crimes Hediondos), além de sua previsão no artigo 41, da Lei 11.343/06 (Lei de Drogas), artigo 25, § 2°, da Lei 7.492/86 (Sistema Financeiro) e, no artigo 14, Lei 9.807/99 (Programa Nacional de Proteção a Vítimas e Testemunhas), além do fundamento constitucional do artigo 98, I, da Constituição, que permite a “transação” no âmbito criminal.

Sob o ponto de vista ético, notadamente sobre o comportamento dos membros da organização criminosa e não do Estado, cumpre refletir com Eugênio Pacelli, se existiria uma violação ao segredo das organizações criminosas, que poderia revelar-se eticamente reprovável? Isto é, se, de fato, existiria uma ética criminosa sujeita a violação.

Em linha de princípio, é preciso reconhecer desde logo, que a delação premiada constitui um direito subjetivo, não podendo, por óbvio ser imposta como dever ante a garantia constitucional do direito ao silêncio (CF, artigo 5°, LXIII). Para o mestre acima citado, ética, em sentido mais comum, é ciência da moral, de fundo eminentemente axiológico, fundado, na Grécia do período clássico, na idéia do bem e do justo. Logo, não existe nenhum dever moral do integrante para com sua organização criminosa, cujo objetivo é alcançar uma vantagem ilícita, por meio da prática de infração penal.

Nesses termos, validar o instituto da delação premiada é aos olhos da doutrina moderna um meio de não permitir que o investigado do crime de organização criminosa seja punido pelo cometimento do crime e por não poder dele redimir-se, rumo a ressocialização, que constitui objeto da execução penal, numa espécie de ruptura da omertà, lei do silêncio das organizações mafiosas italianas, pela qual seus integrantes juram e selam com seu próprio sangue, não revelar, em nenhuma circunstância ou momento, informações sobre a vida dos dirigentes e as atividades das organizações dos chamados Senhores do crime.

(*) Carlos Magno Couto é advogado e Conselheiro Estadual da OAB/MS

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