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Deslocamento de julgamentos protege direitos

Por Walter Claudius Rothenburg* | 27/12/2011 13:30

A responsabilidade internacional do Brasil, especialmente com relação aos direitos humanos, é cada vez mais firme e evidente. Nosso país deve buscar evitar essa responsabilização, prevenindo a ocorrência de violações aos direitos humanos. Mas é também preciso que o Brasil assuma a responsabilidade por violações praticadas e cumpra efetivamente as determinações impostas em âmbito internacional.

A possibilidade de deslocamento, para a Justiça Federal, da competência para investigar, processar e punir graves violações de direitos humanos, quando as instituições e autoridades locais não consigam oferecer uma resposta adequada, apresentou-se como uma alternativa trazida pela Emenda Constitucional 45, de 2004, dita “Reforma do Judiciário”. Tendo em vista que a responsabilidade internacional cabe ao Estado brasileiro, representado pela União, há sentido em permitir que ela assuma, subsidiariamente, a competência interna relacionada a atentados contra os direitos humanos. Afinal, é o Governo Federal que responde por tais violações perante a comunidade internacional.

O incidente de deslocamento de competência, a ser decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, caracteriza-se, por um lado, pela abrangência: ele cabe “nas hipóteses de grave violação de direitos humanos” (note-se que não ficou restrito ao cometimento de crimes), para “assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte” (art. 109, § 5º, da Constituição). Uma crítica que se pode avançar diz respeito à imprecisão na definição de tais “graves violações”.

Por outro lado, o incidente caracteriza-se pela limitação de titularidade, pois somente uma autoridade brasileira pode suscitá-lo: o Procurador-Geral da República. Não há razão para a exclusividade e, em boa hora, foi apresentada a Proposta de Emenda à Constituição 80, de 2011, de autoria do Senador e professor de Direito Constitucional Pedro Taques, justamente para estender a legitimidade aos órgãos e autoridades indicados no art. 103 da Constituição. Dessa forma, aqueles que podem suscitar o controle objetivo de constitucionalidade, por meio de ações diretas, também poderiam propor o incidente de deslocamento: Presidente da República, Mesa do Senado Federal, Mesa da Câmara dos Deputados, Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa, Governador de Estado ou do Distrito Federal, Procurador-Geral da República, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no Congresso Nacional, confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

A pluralidade de legitimados é mais condizente com a democracia e permite que diversos sujeitos preocupados com os direitos humanos requeiram uma proteção mais eficaz em situações de grave violação. O Brasil é muito vasto, os direitos humanos são numerosos (bem como os tratados que deles se ocupam) e o desrespeito a eles infelizmente não é raro. A perspectiva de ampliação do círculo de intérpretes da Constituição orientou a Proposta de Emenda à Constituição, cuja justificação alude às “novas diretrizes de democracia participativa, segundo a qual a luta pela garantia dos direitos é tarefa de toda a comunidade política e jurídica”.

Aliás, a versão original da proposta que redundou na Emenda Constitucional 45/2004 previa uma titularidade compartilhada para o incidente de deslocamento de competência, entre “órgão federal de proteção dos direitos humanos” e o Procurador-Geral da República.

Não se trata de desprestígio do Chefe do Ministério Público da União, mas de reconhecimento dos limites institucional e pessoal de sua capacidade de trabalho e, sobretudo, da virtude democrática de uma participação ampliada em prol dos direitos humanos. A propósito, a exclusividade da atribuição do Procurador-Geral da República para propor ações diretas de inconstitucionalidade, como era antes, foi superada com a Constituição de 1988, que previu a competência concorrente de outros legitimados. Um resquício criticável dessa unilateralidade ainda se verifica em relação às representações interventivas (algumas hipóteses de intervenção federal e estadual). A legitimação ativa do incidente de deslocamento de competência deve inspirar-se no novo modelo ampliado e não no antigo modelo restritivo.

Nestes anos desde a criação do incidente, tivemos apenas dois casos, ambos envolvendo assassinatos: o da missionária norte-americana Dorothy Stang (por conta de conflitos fundiários no Pará), que foi rejeitado (IDC 1/PA, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, 08/06/2005); e o do vereador Manoel Mattos (combatente de grupos de extermínio na região entre Paraíba e Pernambuco), que foi acolhido (IDC 2/DF, rel. Min. Laurita Vaz, 27/10/2010). A atribuição para suscitar o deslocamento de competência para a esfera federal a todos os legitimados do artigo 103 da Constituição tende a contribuir para uma proteção mais efetiva dos direitos humanos e para um maior comprometimento internacional do Brasil.

(*) Walter Claudius Rothenburg é procurador regional da República, mestre e doutor pela UFPR e pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade de Paris II.

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