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Dimensão zero - O Novo Romance

Por Guido Bilharinho (*) | 09/09/2013 14:10

O romance brasileiro desde seus inícios palmilha roteiro balizado pelos cânones estéticos universais dominantes em cada período, sempre retardatariamente absorvidos no país. Ora é o romantismo, sob cujo pálio tem início como produção sistemática e, desde então, ininterrupta, ora o picaresco, com pelo menos um exemplo digno de nota, ora o naturalismo, o realismo (psicológico ou não), o impressionismo, o pré-modernismo e, finalmente, o desde o início cômpito e polimorfo modernismo.

A maioria das obras apresentam-se submissas, em maior ou menor grau, a esses e outros preceitos estéticos. Algumas, todavia, sem se submeterem servilmente à tendência que perfilham, a aprofundam ou a transcendem, ombreando-se com os mais brilhantes espécimes do gênero de outras literaturas.

Nesse contexto, fugindo do tom dominante à época, década de 1960, surge Dimensão Zero (1970), de Resende Filho (Recife/PE, 1929 - Rio de Janeiro/RJ, 1977), sob o signo anunciado de “novo romance”. Então, alcançam êxito de público (do restrito público leitor brasileiro), de certos setores da crítica literária (já, àquele tempo, quase inexistente), e são promovidos por ainda incipiente marketing editorial (geralmente enganoso) apenas os romances que exploram os caminhos e descaminhos políticos e os embates ideológicos que marcam o período.

Se as obras de sucesso preocupam-se e tentam espelhar o cerne nodal da época na sequência tumultuária dos acontecimentos, embora e talvez por isso mesmo não indo além de sua aparência, Resende Filho, em seu romance, desprezando o episódico e o superficial, que constituem o modismo de então, inclusive, em outras artes, busca retratar o ser humano inserido em suas coordenadas básicas e sujeito às contingências de sua natureza e posição.

À semelhança do que há de melhor no gênero, Dimensão Zero não exibe as cicatrizes do duvidoso gosto estético-político que caracteriza, no país, a década de onde emerge. Assim, ao invés de se cingir à casca que emoldura e envolve o conteúdo, sua matéria é a constante humana que forma o âmago do vivido, desbastado de quaisquer enfeites e efeitos enganosos. Depurada, essencializada, a realidade humana apresenta-se problematizada.

A congênita verdade do ser humano é submetida à concreta vicissitude pessoal. Cada personagem é recortada e esbatida em circunstância vivencial particular, exercendo o ato de viver no delimitado espaço imposto pela estrutura social.

O romance é protagonizado pelo ser humano contemporâneo, multifacetado em inúmeras individualidades. As personagens revelam-se, em sua órbita de ação, tensionadas face aos enfrentamentos opostos pela vida e seu exercício, compondo quadro artístico e ficcional homogêneo.

A técnica do Autor dissente totalmente daquela predominante na ficção brasileira até então. Dimensão Zero configura, realmente, novo romance no país, que procura e consegue distender o mais possível o fio da modernidade artística no âmbito ficcional, sem concessões ao facilitário, ao efêmero, ao acessório e ao mau-gosto. Nele não se constroem uma ou várias tramas, estórias ou enredos, mas, vivenciam-se situações. Cada personagem é o centro de uma delas, que em nada se relaciona com as vividas pelas demais personagens.

Cada circunstância identifica-se com a respectiva personagem, decorrendo uma da outra. Aquela só pode estar sendo vivida por esta e esta só pode criar ou proporcionar aquela. Daí que, se se eliminar uma personagem, elide-se automaticamente a conjuntura em que se encontra e vice-versa. Não há, pois, uma trama onde se possa, mantido o enredo, substituírem-se personagens, modificar-se-lhes o caráter ou alterarem-se-lhes posição e importância, como, neste último caso, acontece com o Dr. Bogóllof em Numa e Ninfa e nas Aventuras do Dr. Bogóllof, de Lima Barreto. Com extrema habilidade e pertinência, Resende Filho desenvolve essas situações, que não se cruzam e nem se interpenetram, seguindo separada e alternadamente, independentes umas das outras. Não se tem, pois, um romance no sentido ou na prática usuais do termo. Porém, vários. Tantos quantas são as personagens. Graficamente, no entanto, cada lance sucede ao anterior sem qualquer interrupção, indicação ou pausa. Contudo, a caracterização das personagens e o contexto em que se movem são tão nítidos que, sem dificuldade, se os acompanha e, de todos, igualmente, se participa, tal o equilíbrio e adequação do encadeamento ficcional, uniformidade e alta qualidade de uma linguagem sofisticada, moderna, direta, densa.

A autonomia de cada ocorrência faz com que, diversamente de uma parede, onde os tijolos compõem corpos singulares, mas que, com exceção dos colocados na parte superior, não podem ser removidos sem afetar todo o conjunto, nesse romance as personagens e sua circunstância podem ser retiradas ou trocadas por outra ou outras sem que o todo se ressinta. No entanto, como na parede exemplificada, onde a matéria-prima dos tijolos é a mesma e análogo o cimento que os une e fixa, de igual qualidade é a linguagem e de idêntica densidade a contextura humana das personagens no decorrer de todo o livro.

Se se pode desmontar a obra, mercê da autonomia das várias situações, sua reunião encadeada demonstra, por força da perícia com que é realizada, a propriedade e a eficácia da técnica utilizada.

Dimensão Zero resulta, pois, conjunto estético e ficcional harmonioso por força da excelente configuração dos elementos constitutivos do gênero, onde sobressaem modernidade, flexibilidade, pertinência e habilidade da linguagem e do enfoque da problemática humana contemporânea.

(do livro Romances Brasileiros – Uma Leitura Direcionada. Uberaba, Instituto Triangulino de Cultura, 1998).

(*) Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000 e autor de livros de literatura, cinema, história do Brasil e regional.

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