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Diversidade linguística do Pantanal: a beleza a ser conhecida

Por Cristina Martins Fargetti e Denise Silva (*) | 16/12/2014 13:20

Neste texto, buscamos refletir um pouco sobre o que é diversidade linguística, como pode se dar e o que se pensa a seu.

Procuramos apresentar caminhos para se pensar nesse assunto, focalizando as questões que podem surgir em sala de aula, pensando em uma ponte entre a linguística e a prática da educação escolar indígena, hoje a cargo dos professores das próprias etnias. Os questionamentos, longe de uma crítica ao que já se fez, visam a colaborar com os projetos atuais e futuros, em que, cada vez mais, os indígenas são protagonistas.

Quantas línguas tem o meu país?

Existe o mito de que o Brasil é um país homogêneo quanto a sua língua, tida como única, de Norte a Sul, o português. Reforçando esse mito da homogeneidade existem diversos fatores, que passamos a examinar.
Em primeiro lugar, diz-se sempre que em nosso país todos se entendem, diferentemente do que ocorreria em outros países, como a Itália, com seus dialetos tão díspares. Isso é mesmo verdade? Com certeza, os dialetos italianos são mais diferentes entre si do que nossos falares regionais, mas nossas diferenças, em um país tão grande, não são desprezíveis. Talvez realmente sempre haja compreensão numa conversa banal, comum, mas, por exemplo, se um paulista for conversar com um pantaneiro, será que entenderá o que ele vai dizer? Serão as mesmas palavras, a mesma pronúncia, as mesmas concordâncias? Provavelmente não. Além disso, expressões típicas de uma região podem causar constrangimento, quando não são conhecidas por ambos interlocutores. Em Belém do Pará, por exemplo, a expressão “Égua!” dita com ênfase e em um tom mais alto que o da fala normal não é um xingamento, como um não-paraense poderia pensar, mas quer dizer algo como “Puxa!”, “Nossa!”. Imagine-se quanto mal-entendido pode haver entre os desavisados...

Em seguida, podemos pensar que a língua oficial do país é mesmo o português, para o qual existe um sistema de ensino já há bom tempo, com materiais didáticos, cursos de formação de magistério, ampla literatura, presença marcante na internet, etc. Isso se deve, com certeza, à história da oficialização da língua, que passa, inevitavelmente pelo decreto do Marquês de Pombal, no século XVIII, proibindo o ensino nas escolas da língua geral, de base no tupi. Devido a isso, não temos uma língua indígena amplamente usada, como ocorre no Paraguai, com o guarani. Mas há que se dizer que hoje contamos com línguas indígenas co-oficiais como Baniwa, Tucano e Nheengatu, em São Gabriel da Cachoeira, Amazonas. Contudo, o real status de tais línguas não sabemos, ou seja, elas têm garantidos os seus direitos legais ou eles ficam apenas no papel, em lei decorativa?

Na sequência, pensando ainda nas razões da existência do referido mito, há o desconhecimento da existência de outras línguas, em especial, as indígenas. A maioria da população realmente pensa que só se fala português no Brasil. Isso é derivado do apagamento do índio no discurso geral, embora livros didáticos atuais se esforcem para reverter um pouco a situação. Pensa-se na língua tupi, a língua que os índios falavam aqui, num passado remoto... Realmente, o tupi era muito difundido, em toda costa brasileira; deixou marcas sensíveis em nosso léxico, em especial flora e fauna; mas não foi o único a existir. Há estimativa de que, por ocasião do contato com o europeu, falavam-se aqui mais de mil línguas, das quais, portanto, restaram em torno de 15%. E continuam a desaparecer em ritmo acelerado, pois há comunidades com apenas poucos falantes idosos, o que se apresenta como risco iminente de perda. Reverter esse quadro é possível, desde que haja vontade da etnia para isso.

E finalmente, há o preconceito com o diferente, levando a evitá-lo, dizer que não existe, mesmo sabendo de sua existência, ou ridicularizá-lo. Ambas atitudes o deixam à margem, sem expressão. É sabido quanto de discriminação representantes de comunidades indígenas sofrem em muitas cidades brasileiras, passando por situações embaraçosas, inclusive de repreensão pelo uso da língua indígena.

Como sabemos, a homogeneidade linguística não é nem de longe a nossa realidade, pois além da variação que a própria língua portuguesa apresenta, e que não é toda conhecida, temos ainda línguas de imigrantes, faladas inclusive por comunidades inteiras, e também quase 200 línguas indígenas, também elas, muitas vezes, portadoras de variedades. Essa diversidade linguística ainda não é totalmente conhecida e o governo federal se empenha em conhecê-la, como prova o decreto assinado pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de nº. 7.387, que institui o INDL, Inventário Nacional da Diversidade Linguística, o qual busca mapear o Brasil todo. Alguns projetos-piloto já foram desenvolvidos, como início para uma sucessão de projetos que dêem conta de mostrar um pouco do que não sabemos, e talvez de banir para sempre o mito do monolinguismo.

Assim, ao tentarmos entender a diversidade linguística de nosso país, devemos nos esforçar por conhecer as variedades do português brasileiro e as línguas de imigrantes, mas devemos também conhecer quais são afinal nossas línguas indígenas, quantas são, quantos são seus falantes, onde vivem, etc. Para isso, instrumentos como questionários sociolinguísticos devem ser montados, pensando-se nas realidades diferentes de cada etnia.

Documentação linguística

A documentação de uma língua indígena é ponto crucial para o trabalho de sua revitalização, de sua ampliação de uso, de seu ensino em ambiente escolar. No passado, esteve a cargo de missionários, que por vezes pouco contribuíram, focalizando-se em estudos esparsos e tendo em vista a tradução da bíblia para as línguas das comunidades. Não temos hoje acesso a qualquer banco de dados produzido por eles, com gravações, por exemplo, à disposição da comunidade acadêmica.

Revertendo essa situação, linguistas brasileiros têm se dedicado à tarefa de documentar e estudar as línguas indígenas de nosso país, e produção acadêmica diferenciada tem aparecido nas últimas três décadas. Há esforços de determinadas instituições, como o Museu do Índio, para montar um banco de dados que esteja disponível aos estudiosos e aos falantes das línguas. Estes, muitas vezes, com alguma formação em linguística, passam a ter participação ativa no processo de documentar suas línguas, o que coloca o país numa nova fase de estudos.

Mas o que vem a ser documentar? É na verdade construir acervos de dados sobre a língua em que se possa percebê-la em seu funcionamento. Uma língua sem estudo algum deve contar com dados elicitados para o reconhecimento de sua estrutura, contudo, tal tipo de dado, que parte da necessidade do linguista, não constitui exemplo de uso cotidiano da língua. Assim, a tarefa deve ir mais longe, deve-se gravar e transcrever dados de fala em uso, ou seja, pessoas conversando, pessoas narrando, um chefe discursando, etc. Tal tipo de acervo é valioso para as gerações futuras, que, ou estarão tentando revitalizar a língua, ou já a falarão de maneira muito diversa, sendo interessante rever como ela era no passado.

Diversos autores têm demonstrado a velocidade da perda linguística no mundo, enfatizando que, em regiões como a América do Sul, ela é bem maior do que a perda da biodiversidade. Isso porque hoje as línguas não estão se extinguindo devido à extinção dos povos que às falam, mas sim devido à sua substituição por línguas das sociedades majoritárias, como o português, no Brasil. As razões alegadas para isso seriam o maior contato com tais línguas, seu maior prestígio, e principalmente a perda de interesse das gerações mais jovens pelas tradições de seu povo. Em relação a isso, muito pode ser feito, pensando-se na sensibilização dessas gerações, o que tem sido conseguido, em diversos projetos, através de mídias modernas.

Como linguistas, acreditamos na importância da participação ativa dos indígenas na documentação, revitalização e mesmo ressurreição de suas línguas. Os povos indígenas têm relevante trabalho pela frente, pois são responsáveis pelas decisões de política linguística referentes a suas comunidades. Não são decretos, leis ou estudos que decidem isso, de fora para dentro, mas são os próprios falantes das línguas os responsáveis pelos destinos das mesmas. Afinal, de nada adiantam estudos, documentações e pareceres que a academia não-indígena pode realizar, se os falantes não se importarem com as situações linguísticas que vivenciam. Línguas com pouquíssimos falantes podem ser revitalizadas, ressuscitadas mesmo, com processos que envolvem a vivência, nessas línguas, do cotidiano dos mais jovens, no contato direto com os últimos falantes. Cabe à geração mais jovem a preservação e continuidade de seus sistemas linguísticos.

A produção científica, com a participação direta de indígenas, pode trazer muito conhecimento valioso à toda humanidade. É conhecendo cada sistema linguístico que podemos tentar postular teorias mais abrangentes para responder à pergunta do que seja a linguagem humana, e para entender os sistemas culturais, biológicos, etc, que elas veiculam. Esse conhecimento, para além da academia, pode trazer, a curto prazo, reflexões que contribuam para a capacitação de professores indígenas, para a melhoria do ensino bilíngue nas escolas das comunidades, para a elaboração de materiais didáticos e de leitura em ortografia adequada. Também pode contribuir para começar a erradicar o preconceito que tais línguas, e respectivos falantes, sofrem da sociedade de seu entorno. Longe de serem primitivas, simples, sem gramática, as línguas indígenas são na verdade completas para a expressão do pensamento, qualquer que seja ele. Se a língua não possui palavras para um determinado assunto, pode emprestar de outra (como todas as línguas o fazem), ou criar novas palavras, utilizando-se para isso de processos morfológicos próprios. Assim, não há língua primitiva, inclusive porque fenômenos ocorrentes em muitas das línguas indígenas brasileiras são complexos para aqueles que não os têm em sua língua materna, por isso tais línguas não são simples. Possuem suas gramáticas próprias, como sistemas estruturados, que todo falante da língua conhece muito bem logo ao aprender a falar, afinal, conhecer gramática não se reduz a saber o que compêndios gramaticais dizem, prescritivamente. A gramática de uma língua é algo internalizado por todo falante dela, que é capaz de dizer o que pertence a ela ou não, o que é gramatical ou agramatical.

A academia, leia-se os linguistas indígenas ou não, tem papel urgente na descrição e documentação das línguas indígenas. Esforços para obtenção de recursos financeiros têm ocorrido, e observam-se patrocínios de inúmeros projetos envolvendo educação escolar indígena e documentação linguística. Aos professores coloca-se a tarefa de mostrar às lideranças a urgência do trabalho, buscando apoio onde, por vezes, um discurso de assimilação à cultura não-indígena já tomou conta da fala de muitos. A história de sucessos das muitas iniciativas deve ser contada, os benefícios do multilinguismo devem ser mostrados, e a tristeza da perda da diversidade, onde ela já ocorreu, não deve ser esquecida. Ao linguista cabe descrever e auxiliar no ensino, com seu conhecimento específico, mas a recriação de uma língua, quando ela já deixou de existir definitivamente sem qualquer registro, é tarefa impossível para ele. Isso deve ser claro sempre.

(*) Cristina Martins Fargetti e Denise Silva, pesquisadoras da Unesp

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