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Intervenção do Supremo nas prisões

Por Carlos Magno Couto (*) | 08/07/2015 15:07

Respeitem ao menos a dignidade dos acusados. As prisões estão lotadas, sujas de vômitos e de sangue. Essa nódoa será lavada, um dia, mas os homens que a toleram, os homens que a aumentam, esses ficarão com o estigma para sempre. E pagarão – um dia – a ignomínia e a violência. Serão eles os seus próprios verdugos diante do povo e da história”. (Carlos Heitor Cony)


O Brasil foi o maior território escravagista do hemisfério ocidental por mais de 350 anos, tendo sido também o país que mais tempo resistiu a pôr fim ao comércio negreiro e o último do continente americano a abolir a mão de obra escrava, que era uma sólida instituição nacional, que parecia imune às transformações e aos ventos libertários do século XIX, como está dito na obra de Laurentino Gomes.

Já o Brasil, dos tempos atuais, figura como a quarta maior população carcerária do mundo.

Inobstante esse cenário prisional desalentador, cumpre fazer ecoar aqui, a frase resgatada pelo Ministro do STF Luís Roberto Barroso, do navegador solitário Amyr Klink, quando ele diz: “O maior naufrágio é não partir”.

Invoca-se essa passagem para dizer que nosso país encontra-se às vésperas de finalmente pôr-se a caminho de uma grande transformação substancial dessa instituição sem direitos, antipopular, bárbara e desumana, que é o sistema penitenciário do Estado brasileiro, cujo tratamento dos presos é pior do que o concedido aos animais em zoológicos, a lembrar feras humanas ou mesmo um autêntico lixo humano intolerável.

A distorção do sistema é tanta que a prisão é reconhecida por todos como uma escola profissionalizante do crime, com um percentual de reincidência estimado em 70%, sob o olhar e o patrocínio do Estado brasileiro, a ponto do Ministro da Justiça do país José Eduardo Cardoso, admitir publicamente, que preferiria até morrer a ser preso numa dessas verdadeiras masmorras medievais.

Em suma, não há no país uma instituição mais incompatível com o que prevê a Constituição da República do que o sistema carcerário nacional, de vez que este documento essencial do cidadão brasileiro, que é a medida de todas as coisas, consagra como princípio fundamental a dignidade da pessoa humana, proíbe a tortura e o tratamento desumano ou degradante, veda as sanções cruéis, impõe o cumprimento da pena em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e sexo do apenado, assegurando aos presos o respeito à integridade física e moral, além de prever a presunção de inocência, entre outros direitos fundamentais, tais como a saúde, educação, alimentação e adequado acesso à justiça.

Foi diante desse ambiente impróprio à existência humana, que o Partido político PSOL em parceria com a Clínica de Direitos Fundamentais da UERJ, ajuizou perante o STF, guardião da Constituição, uma ação de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental objetivando seja reconhecido o “estado de coisas inconstitucional” do sistema penitenciário brasileiro, tendentes a sanar as gravíssimas lesões a preceitos fundamentais da Constituição, decorrentes de condutas comissivas e omissivas dos poderes públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal, no tratamento da questão prisional do país.

A referida ação segue experiências exitosas de intervenção da jurisdição constitucional de países como os Estados Unidos, África do Sul, Argentina e Índia e, muito especialmente da Corte Constitucional da Colômbia, que impôs aos poderes do Estado a adoção de medidas tendentes à superação de violações graves e massivas de direitos fundamentais e supervisão, em seguida, a sua efetiva implementação.

A respeito do tema, a peça inicial sob comento, traz trecho flagrante e esclarecedor do recente voto proferido pelo Ministro Barroso, em sede de Recurso Extraordinário, interposto por um condenado que cumpriu pena no presídio de Corumbá/MS, em condições degradantes, assim averbado: “(...) o quadro crônico de omissão e descaso com a população carcerária exige que este Supremo Tribunal Federal assuma uma postura ativa na construção de soluções para a crise prisional, impulsionando o processo de superação do atual estado de inconstitucionalidade que envolve a política prisional do país. Sua intervenção estaria plenamente justificada na hipótese, porque daria para proteger e promover os direitos fundamentais de uma minoria que, além de impopular estigmatizada, não tem voto. Faltam assim, incentivos para que as instâncias representativas promovam a melhoria das condições carcerárias”.

Cabendo reproduzir aqui, por conseqüência, fragmentos do pedido definitivo da aludida demanda que poderá marcar o fim de um método penal de feição medieval, através do STF, de modo a: declarar o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro, determinar ao governo federal que elabore e encaminhe ao STF, no prazo máximo de 3 meses, um plano nacional visando à superação do estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro, dentro de um prazo de 3 anos, devendo conter propostas e metas específicas para a superação das graves violações aos direitos fundamentais dos presos em todo o país, especialmente no que toca à redução da superlotação dos presídios, contenção e reversão do processo de hiperencarceramento existente no país, diminuição do número de presos provisórios, adequação das instalações e alojamentos dos estabelecimentos prisionais aos parâmetros normativos vigentes, no que tange a aspectos como espaço mínimo, lotação máxima, salubridade e condições de higiene, segurança, efetiva separação dos detentos de acordo com critérios como sexo, idade, situação processual e natureza do delito, garantia de assistência material, de segurança, de alimentação adequada, de acesso à justiça, à educação, à assistência médica integral e ao trabalho digno e remunerado para os presos, contratação e capacitação de pessoal para as instituições prisionais, eliminação da tortura, de maus tratos e de aplicação de penalidades sem o devido processo legal nos estabelecimentos prisionais, adoção de medidas visando a propiciar o tratamento adequado para grupos vulneráveis nas prisões.

O plano nacional deve conter, também, a previsão dos recursos necessários para a implementação das suas propostas, bem como a definição de um cronograma para a efetivação das medidas de incumbência da União Federal e de suas entidades, com monitoramento da implementação do plano nacional e dos planos estaduais e distrital, até que se considere sanado o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro.

Até lá, como pugna o texto sob luzes, espera-se que os juízes brasileiros e tribunais, reconheçam a aplicabilidade imediata da audiência de custódia, no prazo máximo de 90 dias, de modo a viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária em até 24 horas contadas do momento da prisão, assim como reconheça que o juízo de execução penal tem o poder-dever de abater tempo de prisão da pena a ser cumprida, quando se evidenciar que as condições de efetivo cumprimento da pena foram significativamente mais severas do que as previstas na ordem jurídica e impostas pela sentença condenatória, de forma a preservar, na medida do possível, a proporcionalidade e humanidade da sanção, pois, como enfatizou o Ministro Barroso: “(...) o tempo de pena cumprido em condições degradantes e desumanas deve ser valorado de forma diversa do tempo cumprido nas condições normais, previstas em lei. Parece nítido que a situação calamitosa dos cárceres brasileiros agrava a pena imposta ao preso e atinge de forma mais intensa a sua integridade física e moral. Nesse sentido, a redução do tempo de prisão nada mais é do que o restabelecimento da justa proporção entre delito e pena que havia sido quebrada por força do tratamento impróprio suportado pelo detento”.

Para concluir, registro que comecei esse texto com uma advertência amarga do escritor Carlos Heitor Cony, agora, encerro com sua doce esperança: “Olhando os horizontes que o cercam o náufrago não saberá de que lado surgirá a luz. Mas espera. Sabe que a aurora, saída das águas, de repente ameaçará uma cor de dia. Essa espera justifica a sua luta e a sua sobrevivência(...). E quando o vento se tornar mais frio, não é hora de desesperar: é que esse vento anuncia que, de algum canto, com já algum calor, a aurora surgirá para todos, com suas redenções e claridades. Com o seu futuro – que é o futuro de todo um povo”.

(*) Carlos Magno Couto, é conselheiro estadual e presidente da Comissão do Sistema Penitenciário da OAB/MS

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