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Manoel de Barros, por Carlos Magno Couto

Por Carlos Magno Couto (*) | 02/12/2014 15:47

Para falar do advogado Manoel Wenceslau Leite de Barros, do seu morrer que tem uma dor de árvore, eu falo de pé, mas no fundo, no fundo, estou nesta hora de joelhos num chão do mais puro barro de uma venda de bananas no Beco da Marinha, na beira do rio Cuiabá, que está quieto e encolhido, nas margens deste barranco onde nasceu um menino poeta em 19 de dezembro de 1916.

Na verdade, nestes últimos dias amanhecidos nas mãos do poeta Manoel de Barros, em que ele vai deixando a vida e a morte para trás eu me sinto também ajoelhado na Rua Piratininga, no Bairro Jardim dos Estados, na cidade de Campo Grande, no Sul de Mato Grosso, no mesmo trecho desta Rua da memória onde morou em dias antigos o legendário Sargento Baiano com sua mulher e filhos, dentre eles, o Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional de Mato Grosso do Sul, Julio Cesar de Souza Rodrigues, quando ainda essa Rua do Poeta era sertaneja, ornamentada apenas pela poeira vermelha de nossa terra e por terrenos baldios.

Designado para homenagear o poeta em nome de nossa Ordem cismo ainda estar posto de joelhos numa canoa de um índio Guató, feita de um único tronco, na terra Mbayânica, nos primórdios do território da Nação dos índios Gauikuru, exímios cavaleiros do Pantanal e de seus parentes Mbayás e Paiaguás, hábeis canoeiros do mar de Xarayés, mar do sertão pantaneiro, que segundo reza a lenda Guaikuru foi um mar que secou, mas não morreu, diria eu, por ser a fonte das águas adocicadas com aroma da flor de jasmim, que Dona Stella, no adeus de uma vida, de um amor de 64 anos, tirou do jardim de sua casa para perfumar espiritualmente o último Manoel.

De acordo com um célebre Manifesto Pró Estado do Pantanal, de autoria, entre outros, de Humberto Espíndola, cuja arte plástica é o brasão do meu Estado, foram esses índios Guaikuru, bem antes dos europeus, os responsáveis pela formação do nosso peão pantaneiro, índios de diversas etnias, por eles avassalados, principalmente os guaranis que perfaziam maioria dessas terras então Paraguaias.

Diz esse documento histórico que essas sociedades indígenas da região por eles aculturadas, fazia com que a maioria assumisse a ‘cidadania guaikuru’, adotando a língua e os costumes, satisfeitas com a proteção que estes lhes davam sobre os invasores espanhóis e portugueses, tendo sido eles, portanto, os primeiros e, ainda hoje, seus descendentes, os genuínos pantaneiros.

Para mim, Manoel de Barros, escrevia a lápis, com letra miúda de criança, as coisas mais eternas.

Este poeta ao meu sentir estruturou a língua pantaneira, inventando ou redescobrindo com sua cosmovisão a importância substancial não apenas da flora, fauna, do chão e de todas as coisas mais insignificantes e primitivas de um pantanal que só os olhos dos poetas é dado enxergar e transmitir a essência, mas sobretudo, da comunicação dos homens deste lugar sem data, sem tempo, sem limites, como os horizontes e, como, aliás, está escrito por suas mãos sábias na apresentação do livro Gente Pantaneira, de Abílio Leite de Barros, que li com o respeito e o silêncio devido aos grandes clássicos da literatura portuguesa.

De modo que assim escrevendo com um toco de lápis, através do poder da palavra poética Manuel consolidou uma língua literária.

A propósito, quando Manuel encontrou Guimarães Rosa, naquele santuário ecológico da humanidade, já havia dito para ele que o Pantanal quase teve um dialeto. Segundo ele, muitos anos os moradores foram isolados. Aquilo se fez uma ilha lingüística e como as palavras sofrem erosões morfológicas ou semânticas outras eram criadas. E algumas sumiram por serem de cidade.

Sendo certo que em suas andanças pelo reino das palavras, observou que muitas perdem letras no começo, outras no final. A formação da linguagem é baseada como disse, em erosões morfológicas e a escolha de palavras está ligada à facilidade com que podem ser ditas, daí a existência na língua portuguesa de tantas palavras de quatro letras. Manoel chegou até a colecionar umas quinhentas palavras de um dialeto, que começou a se desenvolver lá.

Em suma, criou com toda substancia de sua alma de pantaneiro de ‘chapa e cruz’, em seus livros de poesia, que julgava serem inúteis, algo que somente um jardineiro ancião que toca a raiz de uma flor de jasmim pode compreender.
Hoje suas escrituras podem ser reconhecidas como um patrimônio da língua nacional ou até mesmo um documento inaugural para a humanidade.

Quando vejo Manuel humanizar pela poesia, as coisas, o tempo e o vento, renovo o meu olhar sobre o mundo e me convenço do acerto da afirmação do poeta mexicano Octavio Paz, quando ele explica que a poesia é o ponto de intersecção entre o poder divino e a liberdade humana, porque a arte, não existe para reproduzir o visível, mas para tornar visível, como acreditava Paul Klee, aquilo que está mais além dos olhos. Não é por outra razão, que a arte inferior é agradar, o fim da arte média é elevar e o fim da arte superior é libertar.

Confesso que fui liberto pela poesia de Manoel, por seu verso livre, como o do poeta francês simbolista Jean-Nicolas-Arthur Rimbaud, que uma noite fez a Beleza sentar no seu colo, e a achou amarga.

Foi lendo tudo que o poeta dizia que conquistei a liberdade para escrever sem os grilhões dos padrões lingüísticos convencionais, sentindo-me no direito de criar novos relacionamentos com as palavras, enfim, fiz o que pedia Manoel, o arejamento das palavras. Hoje sou capaz, não diria como os escritores de verdade, de suportar o peso do céu com invenções literárias, mas graças a ousadia do exemplo da licença poética de Manoel, de assumiu os meus insignificantes escritos com um permitido desrespeito aos códigos lingüísticos, de maneira a pisar o chão sagrado de minha terra para com meus pés receber dele indelevelmente a marca original de minha pátria cabocla.

No adeus a Manoel de Barros, sua filha Martha falou brevemente com jornalistas, mas com suficiente sensibilidade para revelar o que eu particularmente incorporei de sabedoria do poeta que modificou aspectos importantes do meu pensar sobre a vida, desde quando meu tio José Octávio Guizzo, ex-presidente da Fundação de Cultura de MS, me deu para ler, pela primeira vez, um livro de Manoel, intitulado pré-coisas (Roteiro de uma excursão poética no Pantanal).
Eis o teor de sua fala:

“Ele descansou. Com 97 anos, ele precisava. Meu pai deixou uma obra linda, que modificou a vida das pessoas. Por isso termino com uma poesia dele. Do lugar onde estou já fui embora”.

Manoel é um herói literário. Um totem. Os seus escritos atualizam e talham a nossa mais genuína identidade perdida. Este poeta é uma enciclopédia da terra e do mar, especialmente quando olha para o mar e escuta os ruídos do mato.
Registro ainda, que o advogado Manoel Wenceslau Leite de Barros tinha aversão por falar em público. Na sua primeira audiência em Juízo, como está no livro Memória da Arte em MS, História de Vida, de Maria da Glória Sá Rosa, Maria Adélia Menegazzo e Idara Duncan, em que era julgada uma questão trabalhista, ficou tão nervoso, que vomitou na mesa do Juiz. Esse acontecimento o marcaria para sempre.

Contudo, se por um lado a advocacia brasileira perdeu entre aspas um advogado militante, ganhou um poeta universal, que data vênia, não necessita de audiências formais ou vestes talares para continuar pela palavra libertadora da poesia a defender os fracos, necessitados e os pequenos, pois como disse numa conversa escrita a José Octávio Guizzo, publicada na Revista Grifo, intitulada ‘Sobreviver pela palavra’: “Em estudo sobre O Processo de Kafka, o humanista Gunter Anders, observa o amor de Leni pelos processados. Leni acha que a miséria da culpa os torna belos.

Sua compaixão pelas vítimas é que a leva ao amor. De muita dessa compaixão é feita a poesia de nosso século. Um fundo amor pelos humilhados e ofendidos de nossa sociedade, banha quase toda a poesia de hoje. Esse vício de amar as coisas jogadas fora – eis a minha competência. É por isso que eu sempre rogo pra Nossa Senhora da Minha Escuridão, que me perdoe por gostar dos desheróis. Amém”.

No dia em que o coração do poeta parou, Idara Duncan, que foi Presidente da Fundação de Cultura de MS e Secretária de Cultura e Esportes de Mato Grosso do Sul, recordou de outro momento marcante envolvendo o poeta: “Foi em 1988. Eu participei da comissão julgadora do Prêmio Nacional de Cultura, do Ministério da Cultura, e apresentei o nome de Manoel de Barros na categoria literatura. Ele foi aprovado e recebeu o prêmio das mãos da atriz Cássia Kiss, que ficou de joelhos. Foi aplaudido de pé pelo Teatro Municipal do Rio de Janeiro inteiro”.

De maneira que por toda a sua arte sublime, esforço lingüístico e pelo amor que nos legou, ele bem merece a coroa dos louros dos grandes poetas, porque soube como poucos honrar a condição humana, com suas mãos enrugadas por quase um século de vida, que depois de morto, como li em algum lugar, nem pareciam cansadas apenas repousavam sobre seu peito, finda a maravilhosa função do seu viver. Mãos que eu beijaria.

O funeral de um poeta de verdade, grande como Manuel, deveria ser conduzido à luz de tochas e velas, porque para mim, a maior glória, o maior título que um homem pode alcançar durante a sua existência, é ser escritor e poeta.

Certa vez quando Manoel de Barros concedia uma entrevista a Professora Maria da Glória Sá Rosa, disse que não gostava de homenagens. A fama o deixava indiferente. O que mais gosto, dizia ele, é receber cartas de pessoas que não me conhecem. Isso me deixa feliz.

Em sendo assim, peço licença, para mandar ao poeta na outra margem do rio, um pequeno post de facebook, escrito por minha filha adolescente que sonha um dia ser engenheira civil e que com palavras simples e puras, talhadas na saudade, demonstra haver marmorizado com delicadeza de sentimentos os ensinamentos de sua avó Idara Duncan e de seu tio Avô José Octávio Guizzo, aprendendo desde cedo a respeitar os poetas, principalmente aqueles que têm um coração de aço, de chapa e cruz, num corpo de pássaro, pois como diziam os Hindus a meta da vida não é a felicidade, mas o conhecimento, e que só por meio dele poderemos alcançar a felicidade.

“Morre hoje um grande nome da literatura brasileira, mas cujos versos jamais padecerão na memória de quem teve a honra de ler, o menino que pegou olhar de pássaro para ver valor das cousas simplórias da vida e que desconsertou a gramática por meio de palavras, as quais são capazes de amanhecer a gente. Minha eterna saudade ao homem que alcançou ser árvore e por isso deveria ser tombado como patrimônio da humanidade, Manoel de Barros”.

De Alexia para Manoel.

Muito Obrigado.

(*) Discurso proferido em 28 de novembro de 2014, no Plenário da OAB/MS em homenagem ao advogado e poeta Manoel de Barros.

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