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Multishow, Ferrero e a palavra “melhor”

Por Edson Moraes (*) | 14/09/2011 10:44

Antes que algum patrulheiro me espinafre, quero avisar que nada tenho contra a arte e os artistas bregas. Ao contrário: no rol de minhas preferências musicais há dezenas deles. Posso citar Odair José. Quando eu era adolescente, já o considerava um revolucionário. Não pela opção talvez filosófica, talvez moralista ou religiosa, do “Pare de tomar a pílula”, mas pela coragem de escrever canções como “Eu queria ser John Lennon um minuto só” ou “Deixe essa vergonha de lado”.

A intelectualidade patrulheira da época, inclusive alguns ícones da esquerda com quem convivi anos depois na militância política, estigmatizou o Odair José de “cantor das empregadas”, alienado, brega, vulgar. E não era nada disso. Hoje, esses mesmos carimbadores malucos reconhecem que a breguice do inspirado goiano alcançava sensibilidades inacessíveis aos requintes semânticos e engajados das composições de então.

Odair fazia e cantava músicas de direita muito mais essenciais às pregações revolucionárias que a própria esquerda de Chico, Caetano, Gil & Cia, sem necessariamente arriscar-se ao cadafalso do exílio forçado ou à afiada tesoura da Dona Solange, matrona do serviço da Polícia Federal encarregada de decidir o que podia e o que não podia ser cantado, gravado, interpretado e exibido nos palcos, nas rádios e tevês.

Curti e curto Odair José, Marcos Roberto, Jerry Adriani, Moacyr Franco, Wanderléia, José Roberto, Wanderlei Cardoso, José Ribeiro, Amado Batista, Golden Boys e adjacências, sem que os remeta ao plano da excelência cultural. Mas é difícil concordar que um canal de tevê como o Multishow eleja a voz e a interpretação do Di Ferrero (NX Zero) como as credenciais de melhor cantor do ano. Aí é demais. Pior: no mesmo concurso, os jurados do Multishow poderiam ter escolhido como melhor música uma certa “Fugidinha”, de Michel Teló.

Se o prêmio fosse outorgado tendo como critério o sucesso de público e de mídia das canções e intérpretes, nada a opor. No amplo e variado espaço de manifestações que a produção artístico-cultural permite, há sol para todos, uns mais que outros, pela própria competência ou pela sagacidade e poder das máquinas de marketing a seu serviço. Dessa forma, Di Ferrero, NX Zero, Michel Teló e quesandos mereceriam e merecem prêmios de intérpretes e de músicas mais ouvidas ou de maior sucesso.

Será que o canal Multishow leva a sério o compromisso de fornecer boa e correta informação ao público? Minha dúvida reside numa constatação: o prêmio é dado aos melhores. Quem recorrer ao dicionários, às fontes léxicas e etimológicas, verá que melhor significa: de superior qualidade ou valor; o que é considerado superior a tudo e a todos; o de forma mais perfeita. Melhor a expressão que significa “mais forte”, parida do grego mala, traduzida como “muito mais”. Sua raiz está associada ao latino optimus, composição redundante entre o prefixo ob (à frente) e o sufixo superlativo tumos (muito à frente).

Este modesto articulista acredita que o vocábulo melhor deveria expressar conteúdo e qualidade, não a forma, a superfície, o tecido imediatista da massificação publicitária e comercial que fabrica mitos e sucessos da noite para o dia com a mesma facilidade com que os condena ao ostracismo. Não é à toa que sucessos retumbantes dessa indústria surgem e desaparecem meteoricamente.

A quantidade de discos vendidos, de shows contratados, de inserções nas rádios e de aparições nos canais de tevê não indica que a arte esteja sendo contemplada. Que me perdoem os que consideram arte a repetição enfadonha e comercialmente cômoda de clichês frásicos e melódicos em grande ou maior parte das músicas executadas hoje no Brasil. Por preguiça, incapacidade ou “estratégia” comercial, as gravadoras e os compositores estabeleceram com os marqueteiros do sistema uma reserva de mercado para a mediocridade. Plantam um figurino “bonitinho” para os intérpretes e impõem um repertório ao qual bastam três ou quatro acordes e um refrão “forte”, quase sempre na base do “se você me deixar eu vou morrer de dor”. Genial, não?

Cadê a criação? Muito pouca, salvo as raríssimas exceções. E arte é criação. Como buscar e encontrar o melhor de uma arte sem que se possa desta avaliar sua capacidade de criação? Por conseguinte, o melhor cantor e a melhor cantora deveriam ser submetidos à avaliação de qualidade na afinação, no timbre, na entonação, na extensão vocal… Tais qualidades são olímpica e comercialmente ignoradas no concurso Multishow. E se esses requisitos fizessem parte do concurso, certamente enorme parcela de concorrentes estaria eliminada por antecipação.

Nada contra Di Ferrero, Michel Teló, Luan Santana e demais e dignos representantes de um espaço musical vigoroso no Brasil. Lutaram muito para alcançar o proscênio dos palcos. Eles chegaram onde queriam e são felizes assim, sem se importar com o enquadramento num palco em que o conteúdo criativo da arte e da cultura vale menos que o número de discos vendidos e os alucinados gritinhos das tietes.

(*) Edson Moraes é jornalista, poeta e blogueiro (www.edsonmoraes.jor.br).

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