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O desvio na lei de improbidade administrativa

Por Thiago Guerra (*) | 19/04/2011 06:04

Ocorre um lamentável equívoco costumeiro ao invocar o verbo DESVIAR, encartado no artigo. 10, da lei 8.429/92, para definir aquilo que seria um contrato ilegal, sem dano ao patrimônio público e sem proveito para o infrator.

É regra elementar de hermenêutica, denominada de interpretação analógica ou intra-legem, que a expressão que se faz acompanhar de outras mais específicas, deve ter o mesmo sentido. Assim, o desvio de que fala o art. 10 deve ter a mesma natureza da apropriação, do malbaratamento ou dilapidação dos bens públicos, o que nada tem a ver com o contrato apenas formalmente imperfeito.

Dá para perceber bem essa diferença entre DESVIO APROPRIAÇÃO e DESVIO POR IRREGULAR APLICAÇÃO DE VERBA, no exame do Decreto-lei nº 201/67, que trata da mesma matéria, no âmbito criminal.

Com efeito, o verbo desviar vem incluído em dois dispositivos do Decreto-Lei nº 201/67. No inciso I, do art, 1º (“apropriar-se de bens ou rendas públicas, ou DESVIÁ-LOS em proveito próprio ou alheio”), com pena de 2 (dois) a 12 (doze) anos e no inciso III, desse mesmo artigo (“DESVIAR ou aplicar indevidamente, rendas ou verbas públicas”), com pena de 3 (três) meses a 3 (três) anos de detenção.

Qual a razão dessa gritante diferença no apenamento do DESVIO do inciso I para o DESVIO do inciso III.

É porque, o desvio do inciso I, compreende o proveito próprio ou alheio, enquanto que o desvio do inciso III significa apenas o emprego irregular de verba ou renda pública.

Em forma de exemplo, digamos que um prefeito municipal tenha celebrado contrato de aluguel de imóvel, para que no imóvel se instalasse uma secretaria, de um funcionário público.

No caso, o desvio teria consistido unicamente na celebração do contrato irregular com pessoa que não poderia contratar com a administração.

Todavia, não obstante a ausência de malversação, apropriação, locupletação, ou qualquer outro procedimento que denigre e cobre de indignidade o administrador, a sentença, sem levar em conta as acentuadas diferenças de procedimentos, aplicou aplica ao prefeito municipal todas as penalidades da lei.

Ora, se o Prefeito rouba, comete peculato, dilapida o patrimônio público, sofre todas as sanções do art. 12 da lei 8.429/92, entre as quais a PERDA DA FUNÇÃO PÚBLICA e a SUSPENSÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS.

Se o Prefeito não rouba, não comete peculato e não dilapida o patrimônio público, mas celebra um contrato de locação tido como irregular, sem prejuízo ao erário e até com proveito para a comunidade, vai sofrer as mesmas penalidades?

Essa seria uma injustiça. Mas é o que acontece.

Tal se deve à defeituosa redação da lei 8.429/92, que engloba todas as sanções penais numa única disposição, levando o aplicador ao equívoco de concluir que todas elas podem ser impostas, indiscriminadamente, tanto para as infrações mais graves, como para as mais leves.

O grande rigor das sanções da Lei de Improbidade preocupa os intérpretes e os Tribunais, expedindo doutrina e arestos claramente advertências para que se cuide de só aplicar esse gravames quando o fato em si for sério, grave e feridor consciente dos altos valores protegidos pelo Estado.

E ainda a punição grave de infrações pequenas fere a lógica jurídica e o princípio da proporcionalidade.

Nenhum dispositivo da Lei de Improbidade cabe e fixa-se nas generalidades.

Embora tenhamos devasta doutrina a respeito da matéria, não podemos nos esquecer dos princípios que temperam os erros da Lei n º 8.429/92, e que são indissociáveis da arte de bem julgar; a proporcionalidade e a razoabilidade.

São princípios preciosos especialmente quando a lei é mal feita e com sanções muito maiores do que a infração. O Juiz, o bom Juiz, é um operador do Direito, não um mero instrumento do Direito positivo, um cego preenchedor de formulários, cabendo-lhe adequar à lei ao fato concreto, tarefa que é só sua e é indelegável.

Deste modo afirmamos que são princípios indispensáveis que servem de filtro, de corretivo na interpretação da lei, para evitar exatamente o que nestes autos está a ocorrer: excesso punitivo.

Esse deslizamento precipitado da ilegalidade (discutível) e da moralidade para a improbidade deixou à margem os mais importantes aspectos do caso.

Repita-se, as sanções da Lei da Improbidade são tão pesadas (suspensão de direitos políticos, incapacidade para contratar com o estado, multas etc) que já de plano o intérprete deve considerar que elas só incidem quando a infração é grave.

A arte de julgar, que o Juiz vocacionado aprimora no exercício do cargo, põe à frente de outros valores a percepção de que a sanção é adequada ao fato. Tudo, no ordenamento jurídico, regulando relações, definindo posições, sofre e tem de sofrer a limitação do bom uso, do “modus in rebus”, da legitimidade, da pertinência.

Se há excesso punitivo, ao Juiz compete o ajuste preservando a necessária congruência fato/conseqüência. Pois a pena exagerada acaba mais gravosa do que o fato em si. Já os romanos reconheciam essa realidade: “summum jus, summa injúria’.

(*) Thiago Guerra é advogado, especialista em Processo Penal.

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