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Para Assange, a forca!

Por Thaís de Mendonça Jorge (*) | 09/12/2010 15:34

O vazamento de 250 mil comunicações secretas da diplomacia norte-americana por meio do site Wikileaks nos permite uma leitura à luz da trajetória da imprensa no mundo ocidental. Não por acaso aconteceu nos Estados Unidos, berço de invenções que mudaram a história dos jornais, como a entrevista e o modelo de texto em formato de pirâmide invertida. Também pode ser um bom exemplo das teorias do jornalismo, se queremos ser bem didáticos.

A revolução francesa, em 1789, trouxe à tona os direitos da pessoa humana à livre expressão, pensamento e ação. A figura de um prelo carregado pela multidão em delírio, na Queda da Bastilha, mostra a importância dada à figura do jornalista que, de início, tinha função publicista, no sentido de transmitir as próprias opiniões e “fazer a cabeça” de um público que necessitava de orientação.

Entretanto, repórteres começaram a ser aceitos na sociedade somente a partir do século XIX, com a contratação dos primeiros representantes da imprensa para assistir às sessões do parlamento britânico. Desde então, a figura do jornalista como homem de informação vem se afirmando. A imprensa ajudou no trabalho de consolidação das metrópoles, como urbes, contribuindo para a construção da cidadania e para a circulação do conhecimento.

Os princípios da Declaração Universal da Pessoa Humana estão na Primeira Emenda da Constituição norte-americana assim como na Constituição brasileira e de muitos países. A Primeira Emenda é explícita: proíbe obstar a liberdade de expressão e a da imprensa, assim como vedar o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, onde quer que seja. Herdeira desses pressupostos, a imprensa outorgou a si o papel de cão de guarda das instituições do mundo moderno.

O episódio WikiLeaks – muito propriamente denominado Cablegate, ou seja, escândalos dos telegramas – tem, por sua vez, aproximação com a questão anterior do Watergate. E não apenas pelo vazamento de informações. O Watergate é um prédio em Washington onde aconteciam reuniões do Partido Democrata, espionadas por ordem do então presidente republicano Richard Nixon.

O Cablegate nos remete ao papel do jornalista como gate keeper, ou "guardião do portão das notícias", aquele que está a postos para selecionar o que vai ou não virar componente de noticiário. Em 1972, época do Watergate, o jornal The Washington Post protegeu os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein e nenhuma cabeça da imprensa rolou. Pelo contrário, quem renunciou foi o próprio presidente dos Estados Unidos.

O telegrama é uma forma usual de comunicação entre a diplomacia. O que no passado eram telegramas formais, passados pela rede de telégrafos, hoje são comunicações que se beneficiam da tecnologia, embora mantenham seu caráter confidencial. Como gênero de escritura, pertenceriam a uma espécie de escrita íntima, protegida por segredo de Estado.

No caso do Brasil, a revelação da troca de telegramas diplomáticos faz cair algumas máscaras. Ficamos sabendo, por exemplo, do intenso lobby que subjaz à indústria de armas, tanto para a venda de aviões de caça como para submarinos ou fuzis. Tomamos contato com as falhas de segurança em alguns pontos-chave da economia mundial, como a camada do pré-sal, os portos de Rotterdam e Hong Kong e o estreito de Málaca.

Ninguém falou em venda de armas individuais, mas a mesma grande estrutura que fabrica materiais letais para aviões comercializa revólveres e metralhadoras que depois vão subir os morros cariocas. Na pós-modernidade, a indústria sempre se renova e não pode parar, pois tem de cumprir uma das fátuas do capitalismo, a de sempre produzir mais dinheiro.

Os que acusam o fundador do site WikiLeaks, Julian Assange, de atentar contra a segurança do Departamento de Estado americano, acusando-o de anarquista e de apostar no caos, são os mesmos que reconhecem o direito dos grandes jornais do mundo ocidental – Der Spiegel, El País, Le Monde, The New York Times e The Guardian – à livre expressão.

Foram esses os periódicos escolhidos pelo editor do site para dar suporte à publicação dos documentos. A perseguição a Assange, o esforço deliberado de desqualificá-lo como jornalista, como se a internet não fosse veículo para publicações, e a tentativa de cortar os canais de sustentação do site WikiLeaks são como, em 1587, a sentença que coube a Aníbal Capello, na Itália: a forca.

Identificado como chefe de um grupo de menanti - os mais antigos repórteres, que levavam e traziam informações, também cognominados pejorativamente de gazzettanti e avvisisti – Capello foi condenado à morte pelo Papa Sixto V. Cortaram-lhe uma das mãos, arrancaram-lhe a língua e, depois de morto, foi exibido com um cartaz que o incriminava como “falsário, caluniador”.

Hoje em dia, a qualquer descuido, nossa vida pode estar devassada na internet. Foi o que aconteceu com os papéis norte-americanos. Mas isso não compromete a democracia, ao contrário, ajuda a azeitar as engrenagens, a revelar as estranhas do poder. O que querem fazer com Julian Assange repete o que acontecia nos velhos tempos. Quando a notícia era polêmica, os antigos (como os pós-modernos) não têm dúvidas: matem o mensageiro!

(*)Thaís de Mendonça Jorge é jornalista, professora do Departamento de Jornalismo, da Faculdade de Comunicação, da Universidade de Brasília e pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da mesma universidade. Mestra em Ciência Política e Doutora em Comunicação, pela UnB, é pós-doutora em Cibermeios pela Universidade de Navarra, Espanha.

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