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Parasitismo e neoescravagismo no aeroporto de Guarulhos

Por Luiz Flávio Gomes (*) | 03/10/2013 14:23

Certa vez um professor estrangeiro disse para Caio Prado Júnior (Formação do Brasil contemporâneo) que “invejava os historiadores brasileiros porque eles podem assistir pessoalmente às cenas mais vivas do seu passado”. Eis um exemplo: trabalho escravo (ou análogo) em pleno século XXI no aeroporto de Guarulhos (Estadão 26/9/13, p. B7). Construímos dois Brasis: o avançado e o atrasado. O que deu certo e o que deu errado. Pessoas aliciadas no Nordeste (111, sendo 6 indígenas) foram cooptadas (pela OAS e GRU Airport) para trabalhos em condições insalubres.

Já pagaram multas, indenizações e dizem que vão colaborar com as investigações, inclusive criminais. Outras grandes obras podem estar fazendo a mesma coisa (diz o representante do governo). R$ 15 milhões de bens de cada empresa foram bloqueados. Em pleno século XXI vemos as mesmas barbáries do século XVI. Depois de 513 anos de história, continua firme o parasitismo social (classes dominantes sugando as classes dominadas).

Foi assim que os senhores de engenho e fazendeiros da colônia e do Império se enriqueceram. Até 1888 (ano da Abolição) falava-se em escravagismo (o nosso foi o mais longo de todos os tempos). Depois de três séculos após o Iluminismo, a prática prossegue, sob formas novas (neoescravagismo). O historiador brasileiro é mesmo um privilegiado: consegue ver em 2013 o que se passava no princípio no Brasil colonial. Perecer ou modificar-se, esse era o dilema brasileiro na data da sua independência (1822).

O Brasil se renovou, cresceu, se interiorizou, se urbanizou, mas de forma desorganizada e discriminatória. São muitas as vicissitudes e também os defeitos. Há males de origem que não se apagaram: parasitismo social (exploração de uma classe por outra), selvagerismo (violência) e ignorantismo (exploração da ignorância). Três povos se mesclaram: portugueses, índios e negros. Nasceu um tercius. Criou-se algo novo (um povo mestiço, hoje preponderantemente pardo). O território semideserto foi povoado (Caio Prado Júnior).

Mas o processo ainda não acabou. Não passamos do grande meio-dia de Nietzsche. O passado colonial ainda está presente. Diz o historiador citado: “Observando-se o Brasil de hoje (dizia isso em 1942, mas continua atual), o que salta à vista é um organismo em franca e ativa transformação e que não se sedimentou ainda em linhas definidas: que não tomou forma” (Formação do Brasil contemporâneo).

O trabalho escravo ou neoescravagista é uma realidade muito antiga (já no princípio do século XV os portugueses foram buscar os primeiros escravos negros na África), que marcou o parasitismo do tempo colonial, mas nunca desapareceu dos nossos costumes. Ainda não podemos dizer (depois de 513 anos) que o trabalho livre e digno já se tornou uma realidade em todo país.

Pelo menos não no coração de uma das regiões mais desenvolvidas, aeroporto de Guarulhos. É de se imaginar o que anda se passando pelos sertões. O Brasil ainda conserva traços vivos da era escravagista. Não foi por acaso que aqui a escravidão durou mais tempo. Não está concluída a evolução da economia colonial para a economia moderna. O Brasil ainda tem seu lado muito atrasado: no campo econômico, no social e no moral.

A ética não autoriza a exploração de seres humanos. Nem sequer o tratamento indigno. Reminiscências anacrônicas de um passado que se recusa a morrer retiram nosso país do concerto das nações prósperas e evoluídas plenamente. Continua pendente nossa regeneração política. Dificultada pela degeneração ética. Desse mister não pode escapar nenhum cidadão que cultive a moral.

Em 1823, na Assembleia Constituinte (depois abortada por D. Pedro II), José Bonifácio de Andrada e Silva (Patriarca da Independência), dizia (Projetos para o Brasil): “Proponho mostrar a necessidade de abolir o tráfico da escravatura, de melhorar a sorte dos atuais cativos. E de promover a sua progressiva emancipação (...) é preciso que cessem de uma vez por todas essas mortes e martírios sem conta, com que flagelávamos e flagelamos ainda esses desgraçados em nosso próprio território (...)

Para evitar revoluções, e melhorar progressivamente os governos, cumpre que as diversas classes da nação se instruam e se moralizem em razão inversa desde a nobreza até a plebe”. A escravatura não acabou, a Constituinte foi dissolvida, seis deputados (dentre eles J. Bonifácio) foram presos e depois deportados e a Constituição foi outorgada (1824) depois do golpe de Estado de Pedro I. Assim começou o Brasil. Mas não podemos perder a esperança de que termine bem.

Luiz Flávio Gomes, jurista e coeditor do portal atualidades do direito.com.br. Estou no facebook.com/blogdolfg

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