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Poder político colide com o Estado Social e Democrático

Por Hamilton Carvalhido* | 19/01/2012 13:36

Passados mais de vinte anos do início da vigência da Constituição Federal de 1988, quando se tem presente a afirmação de que a medida do Poder de Punir do Estado é a reclamada pelo interesse social, expressão do princípio reitor do Código de Processo Penal que permanece em vigor, não se pode deixar de reler, com redobrada atenção, a letra constitucional dos direitos e das garantias individuais.

Ainda hoje, entre nós, colidem as duas visões do poder político, porque incompatíveis o Estado Autoritário e o Estado Social e Democrático de Direito. Afinal, a efetividade das transformações sócio-políticas somente é alcançada através de um laborioso e longo processo dialético, principalmente as que encontram manifestação formal em um sistema jurídico estruturado a partir de um projeto constitucional que, tendo como supremo valor a dignidade humana, traz no seu âmago a solução, em favor dos direitos fundamentais, do embate entre o poder, enraizado no passado, e a liberdade, nas suas aspirações presentes e futuras.

A efetividade da Constituição é um processo que reclama de todos e de cada um, como acertadamente se diz da liberdade, a eterna vigilância, até porque o autoritarismo, sempre sedutor à tendência ao despotismo individual, é uma ameaça indescartável, parecendo permanecer, consciente ou inconscientemente nas pessoas, solícito às oportunidades de retorno ou de continuidade, sob formas, por vezes, enganosas e só aparentemente democráticas e de Direito.

Nada, por menos significante que pareça, deve ser subtraído à luta pelo direito. Em tema de Poder de Punir do Estado, em face do qual se levantam, como seus limites ontológicos, os direitos fundamentais, cujo sacrifício há de ser o menor possível, e as garantias individuais, infranqueáveis, nada é ínfimo, pequeno, de pouca importância, irrelevante; ao contrário, tudo é grave, intenso, básico, maior, relevantíssimo, de necessária consideração.

Não se pode deixar de registrar as conquistas garantistas introduzidas no Código de Processo Penal quando ainda vigente a Constituição de 1946, bem como as suas importantes modificações já sob a égide da Constituição Cidadã. De par com tal contribuição maior do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, está a jurisdição constitucional do Supremo Tribunal Federal, que tem contemplado a Sociedade Brasileira com sucessivas decisões que se mostram como verdadeiros e sólidos alicerces da reclamada, indispensável e inadiável efetividade da vigente Constituição Federal.

Há, todavia, para que o sonho das novas formas constitucionais se converta em realidade por inteiro e esteja no cotidiano da vida dos homens, muito que fazer, incluidamente na seara das antigas normas de tempos ditatoriais mais antigos, que, por vezes, parecem inspirar, inconscientemente ou não, novos e atuais atos e ações de instituições do poder, que infringem a Constituição Federal.

O exercício do poder de persecução criminal, que compreende a investigação do delito, o processo penal e a execução da pena, há de ser permanente, rigoroso e eficaz, sem distinção de qualquer espécie, ante a submissão de todos ao Direito, assim o exigindo a Sociedade Brasileira, em face de deveres indeclináveis do Estado.

Tais poderes-deveres, por certo, não reabrem, no Estado Social e Democrático de Direito, instâncias de transigências com o antigo regime, de modo a permitir violações das garantias constitucionais e, assim, a do devido processo legal, que, por certo, abrange as investigações dirigidas à apuração dos crimes e da sua autoria.

Esse poder de investigar, que ainda segue sendo chamado de inquisitorial, tem se revelado, ao longo dos tempos, como uma das mais graves manifestações do poder de persecução do Estado, principalmente o de matiz autoritário, que, com as suas buscas da verdade real e a sua necessidade peculiar de legitimar o arbítrio com resultados de ressonância social, dá causa a múltiplas violações dos direitos e das garantias individuais.

Entre as várias questões maiores que se resolvem no Estado Social e Democrático de Direito em favor das garantias individuais como limites intransponíveis ao poder de punir do Estado, está a referente à razão da investigação, assim sintetizada numa indagação: as investigações podem ser iniciadas sem um fundamento razoável a respeito da prática de uma infração penal? Em outras palavras: pode-se investigar qualquer pessoa, buscando saber se cometeu crime, sem a notícia da ocorrência de qualquer fato que se possa ter como expressão idônea da prática de um delito? Ou por fim, pode-se suspeitar, simplesmente suspeitar e investigar, sem fato qualquer que tanto autorize?

Tenho que a única resposta, evidente e peremptória, que se admite é a negativa, por inexpugnáveis ao abuso a dignidade humana e os direitos que dela resultam, em pura consequência do pacto social originário que delegou o poder político, na sua origem, já limitado pelos direitos fundamentais.

Por certo, a presunção de inocência, que figura, entre as garantias individuais, como um dos limites irremovíveis do poder de punir do Estado, não há de ser entendida apenas eficaz nas fases da persecução criminal, mas, sobretudo, e por maior razão, antes mesmo da sua própria instauração, onde revela toda a sua pujança ética, de modo a inibir, absolutamente, em obséquio da plenitude dos direitos fundamentais, toda e qualquer forma de investigação criminal, só e exclusivamente admissível a partir de fundamento razoável a respeito da prática de uma infração penal que legitime a atuação do Estado.

Enganou-se o poeta ao anunciar a volta dos alquimistas?

Seriam os inquisidores?

A Constituição Cidadã não lhes dá passagem.

(*) Hamilton Carvalhido é advogado, membro da Comissão de Reforma do Código Eleitoral e ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça. Foi presidente da Comissão de Reforma do Código de Processo Penal e ministro do Tribunal Superior Eleitoral.

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