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Poderoso sempre teve privilégios (Como funcionava a Justiça antigamente)

Por Luiz Flávio Gomes (*) | 02/12/2013 10:09

Privilégios para ricos ou nobres nunca foi uma questão nova no Brasil (veja o livro História de conflitos no Rio de Janeiro colonial, de Nireu Cavalcanti). Ele e O Globo (23/11/13, p. 45) dizem o seguinte (as observações entre colchetes são minhas):

1) que os poderosos sempre procuraram fugir das grades [ninguém, na verdade, gosta de ficar preso; o que ocorre de diferente com os poderosos é que eles usam todas as suas relações sociais e familiares de poder para evitar a latrina da prisão];

2) que “processos lentos, tramitando por diversas instâncias, em que os réus recorrem às suas relações pessoais com juízes e, mesmo quando são condenados, gozam de privilégios vetados ao preso comum” é da tradição do Brasil, desde a Colônia [ou seja: sempre foi assim e, considerando nossa tradição histórica, será por um longo tempo];

3) os crimes de corrupção sempre foram julgados “com dois pesos e duas medidas” [continua até hoje; réus com “status” sempre foram tratados de forma diferente, porque são das relações sociais dos juízes e demais operadores jurídicos];

4) presos com recursos pagavam taxas (fianças) para ficar em liberdade [continua dessa forma. Pobre cumpre outras condições ou acaba ficando preso, por não se tratar de “gente confiável”, por não oferecer garantias de fidelidade ao direito, por ser presumido perigoso etc.];

5) os processos eram lentos [enquanto não mudarmos o paradigma da Justiça, processualístico, não consensual, continuará dessa forma];

6) as negociações com os juízes e desembargadores corriam soltas [pela quantidade de juízes punidos pelo CNJ nos últimos anos é de se imaginar que tudo continua como dantes];

7) os ricos sempre tiveram mais blindagens [claro, porque influenciam tanto no processo de criminalização primária – feitura das leis -, como no processo de criminalização secundária – funcionamento do Poder Jurídico];

8) mesmo nas hipóteses de delações (quem delatava na época um crime contra a Igreja ou contra o Monarca ficava com metade dos bens do criminoso) [hoje não existe esse tipo de premiação; premia-se coautor que delata outros criminosos; essa delação, diante da ineficácia investigativa do Estado, tende a virar praga];

9) os ricos usavam seus prestígios de nobreza e da riqueza [sempre foi assim e sempre será];

10) o título máximo era da Ordem de Cristo (o rei era seu grão-mestre; monarquia e Igreja eram inseparáveis) [não há como estudar a política criminal e o direito criminal sem saber dos seus vínculos com a economia, com a história e com a religião];

11) pessoas de sangue infecto (judeus, mouros, ciganos e negros) só conseguiam chegar à nobreza em razão das guerras (foi o caso do negro Henrique Dias, que participou da expulsão dos holandeses de Pernambuco, em 1654) [hoje as pessoas de sangue infecto são o negro (preto ou pardo), o índio e o branco pobre; eles são os torturáveis, exploráveis, prisionáveis e mortáveis];

12) os nobres portugueses não aceitavam “a nobreza que veio da terra” (mas o rei estava acima disso, para preservação dos seus interesses) [desenvolveu-se na Europa a teoria da inferioridade racial e de inteligência dos colonizados; os privilegiados não gostam de se igualar aos inferiores];

13) os vereadores eram de famílias tradicionais [porque o poder político nunca se desvinculou do poder econômico, nem do religioso];

14) os nobres não podiam ter suas casas confiscadas (muitas foram preservadas em 1808, com a chegada do rei ao Brasil) [preservação dos interesses da nobreza, tal como previstos na Revolução francesa, que deu cartão vermelho ao poder religioso e às Monarquias Absolutas];

15) os nobres não podiam ser algemados ou expostos à humilhação pública [a regra contra o abuso das algemas hoje está numa súmula vinculante – número 11; a pena de humilhação pública é aplicada pela mídia diariamente];

16) qualquer denúncia gerava a prisão (mas os ricos pagavam fiança) [até hoje setores da jurisprudência aceitam medidas coercitivas com base em denúncias anônimas];

17) a prisão domiciliar era restrita aos ricos e aos doentes [certamente ricos, porque até hoje os pobres raramente são beneficiários da prisão domiciliar];

18) as cadeias eram podres, sem vaso sanitário ou comida [hoje elas são podres, disseminadoras de doenças, desumanas, crueis e mortíferas, via violência ou aids];

19) a alimentação era responsabilidade da família [essa responsabilidade hoje é do estado, que fornece marmitas incomíveis, com amplo apoio popular; o sentimento de vingança não mudou];

20) os nobres subornavam os carcereiros e passavam a noite na cidade [os subornos se agravaram para ter celular na cela, mais relacionamentos íntimos etc.];

21) o processo andava mais rápido contra os pobres (porque não podiam pagar advogados etc.) [isso não se modificou em absolutamente nada];

22) pobres ficavam recolhidos às vezes mesmo depois de terminada a pena [o mal continua; muitos presos continuam recolhidos mesmo depois de cumprida a pena; a jurisprudência não vê nisso um motivo de indenização alta];

23) o perfil do detento era predominantemente preto [hoje é predominantemente preto e pardo; proporcionalmente tem muito mais preto nos presídios que brancos];

24) alguns presos trabalhavam em obras públicas [essa possibilidade continua, mas é pouco prática, por falta de vigilância];

25) trabalhavam acorrentados [esse é ainda um desejo dos vingadores extremistas do século XXI];

26) condenados pobres por crimes graves eram mandados para colônias africanas [hoje são exterminados, em grande quantidade];

27) para os ricos o processo era muito lento [continua o problema, porque eles usam todos os recursos possíveis e ainda contam com a irracionalidade do funcionamento da Justiça];

28) seus recursos para a Bahia (Tribunal da Relação) demoravam muito tempo (somente o transporte do processo demorava 8 meses) [os tribunais continuam demorando muito para julgar os recursos];

29) réu rico recorria para o Conselho Ultramarino, em Lisboa (lá era julgado pela Casa da Suplicação) [hoje os ricos conseguem chegar ao STJ e ao STF; pelo trabalho da defensoria pública alguns pobres também estão chegando nessas instâncias com seus recursos];

30) os ricos e nobres sempre “mexeram seus pauzinhos” junto aos juízes e à Corte real [o tráfico de influência é da nossa história; são as relações cordiais de que falava Sérgio B. de Holanda];

31) o processo demorava até 10 anos [hoje se consegue demorar mais que isso; veja o processo de Pimenta Neves assim como o mensalão mineiro];

32) ricos, quando presos, ficavam em celas maiores e com melhores condições [no “mercado” paralelo dos presídios se consegue alguma coisa nesse sentido ainda hoje];

33) os pobres ficam em cubículos úmidos e inóspitos [isso não se alterou, salvo que agora são muitos os presos, que precisam às vezes dormir na vertical, amarrados nas grades];

34) os ricos podiam levar para dentro dos presídios escravos que cuidavam de sua alimentação e da sua higiene pessoal [hoje eles não levam escravos para dentro das celas, mas isso não significa que não existam privilégios, no mercado paralelo do presídio].

(*) Luiz Flávio Gomes, professor LFG e do Instituto Avante Brasil

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