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Por que os candidatos fogem do planejamento?

Por Haroldo Pinheiro (*) | 28/09/2016 09:50

Daqui a pouco menos de um mês, será realizada em Quito, no Equador, a Terceira Conferência das Nações Unidas sobre Moradia e Desenvolvimento Urbano Sustentável (Habitat III). O objetivo é o lançamento da “Nova Agenda Urbana”, uma espécie de guia com compromissos e diretrizes para o enfrentamento dos problemas das cidades que hoje já abrigam, na média, 54% (4 bilhões de pessoas) da população global. A projeção para 2050 é que esse número dobre, fazendo da urbanização uma das maiores forças de mudanças do século.

Com um índice de 86%, segundo o Banco Mundial, o Brasil é uma das nações mais urbanizadas do mundo. Em 50 anos, de 1960 a 2010, nossa população urbana cresceu 402%, passando de 32 milhões para 160 milhões de pessoas. Hoje são mais de 177 milhões. Pelo censo do IBGE divulgado em agosto passado, o país tem 17 municípios com mais de 1 milhão de habitantes, somando 45,2 milhões de pessoas ou um quinto (21,9%) da população brasileira.

Em paralelo à Habitat III, outubro abriga no Brasil as eleições municipais para escolher os prefeitos e vereadores que conduzirão seus 5570 municípios entre 2018 e 2021. Em Quito, segundo minuta da Nova Agenda Urbana já conhecida, a ONU reafirmará que a implementação do conceito de “cidades para todos”, referindo-se ao pleno uso econômico, social e ambiental das cidades por seus habitantes, depende muito das chamadas “autoridades locais”, ou seja, os prefeitos e vereadores que estão mais perto dos problemas e os anseios da população.

Estão mesmo? No Brasil, a se julgar pelos debates eleitorais que acontecem no momento, mesmo em grandes metrópoles como São Paulo, a questão “local” é deixada em plano secundário. Não se debate o que, nessas eleições, interessa de fato ao eleitor: a garantia de um futuro comunitário melhor.

Há muito o que se fazer em termos de mobilidade, educação, creches, saúde, proteção às minorias, controle ambiental, infraestrutura e combate à especulação imobiliária, entre inúmeras outras pautas. É lógico que, como realisticamente não podemos sonhar ainda com um cenário em que “ninguém fique para trás”, como prega a ONU, há que se priorizar. É aí que entra o tema menos lembrado de todos na campanha atual: o planejamento urbano.

“A cidade é o suporte físico para o desenvolvimento econômico e social sustentável. Nesse contexto, o planejamento deve se antecipar aos problemas com uma visão de longo prazo, levando em consideração o território como um todo e não um gerenciamento compartimentado em diferentes setores. Sua inexistência é uma condenação às futuras gerações”, diz Carta Compromisso que o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR) apresentará em Quito, comprometendo-se colaborar na implementação da Nova Agenda Urbana.

Metade da população brasileira mora em metrópoles ou grandes cidades. Elas constituem um grupo de apenas 25 aglomerados urbanos e são responsáveis pela geração de mais de 60 por cento do produto interno bruto da nação. Por outro lado, mais da metade do território é ocupado por médias e pequenas cidades. São dois universos desiguais que nos impõe desafios e ações de governança distintos.

O Brasil possui hoje 70 regiões metropolitanas criadas pela União ou pelos Estados, sendo que as 12 mais importantes abrigam 34% da população brasileira. Apesar dessa concentração demográfica, de sua riqueza econômica, dos preocupantes indicadores ambientais, do caldeirão de diversidade social, da relevância cultural, e de representarem o mais influente contingente político do país, essas metrópoles são uma abstração institucional e a gestão municipal existente não consegue lidar com esta complexidade.

“São regiões sem governo próprio, sem parlamento, sem realidade fiscal, sem representatividade política, sem orçamento próprio, sem serviços urbanos e sem planejamento legítimo”, diz outra manifestação recente do CAU/BR, endereçada aos candidatos às próximas eleições. “É urgente a instituição de uma governança envolvendo estados e municípios metropolitanos, como previsto no Estatuto da Metrópole, integrando as diversas políticas setoriais e ações (mobilidade, abastecimento d’água, educação, saúde, economia, biodiversidade, energia e resíduos sólidos)”.

Quais candidatos a prefeito e vereador nas capitais metropolitanas e cidades que gravitam em sua órbita já focaram, ao menos publicamente, essa questão? A maioria permanece com a visão de “cada um no seu quadrado”, ignorando que o problema do município vizinho é também o seu e vice-versa.

Não se está aqui, e nem isso o Estatuto propõe, sugerindo um quarto nível de poder federativo. O que se visualiza é um novo paradigma de gestão consorciada entre estados e municípios, de forma as que a escolha das prioridades não seja exclusiva dos interesses políticos do governador ou da ótica mais restrita dos prefeitos.

As projeções indicam a desaceleração do ritmo de urbanização nos grandes centros, o que não deve ser motivo para inércia. Há novas fronteiras em criação impulsionadas pelo setor agropecuário e há muito a se ajeitar na desordenada ocupação já ocorrida. É o caso da galáxia de cidades médias e pequenas restritas ao território municipal que devem ter Planos Urbanísticos, como exigidos pelo Estatuto das Cidades, para guiar seu crescimento ordenado.

No entanto, esses lugares caracterizam-se por estruturas administrativas e orçamentos frágeis, a ponto de, em 2013, os municípios com menos de 100 mil habitantes terem recebido transferências da União ou dos Estados da ordem de 87% de sua despesa total, como menciona o Relatório do Brasil para a Habitat III.

Uma das consequências é a impossibilidade das Prefeituras disporem de quadros capacitados para elaborar os documentos técnicos que justamente viabilizariam a captação de recursos, inclusive de organismos internacionais. E logo ouviremos falar da reprodução nas médias e pequenas cidades, na proporção devida, dos problemas que hoje sufocam as maiores.

Entre eles, a perigosa tentação de licitarem obras com base apenas em anteprojetos, como prevê proposta em tramitação no Senado, entregando de mão beijada para os empreiteiros a definição dos orçamentos, prazos, especificações volumétricas e qualidade dos materiais de nossas escolas, hospitais, praças e outros equipamentos públicos.

Esse processo, na visão do CAU/BR, é fruto do desmantelamento do planejamento urbano ocorrido no Brasil nas últimas décadas nas três esferas administrativas. As eleições são uma ótima oportunidade para virar o jogo. Basta um mínimo de capacidade técnica e sensibilidade administrativa para recompor nosso planejamento com participação e monitoramento da Sociedade.

A partir desse tripé, se configura uma agenda política da cidade que é elaborada pelo cidadão concomitantemente com os conhecimentos transdisciplinares, entre eles os dos arquitetos e urbanistas. Resta a esperança de que, agora, ou assim que eleitos, os candidatos se comprometam igualmente uma Nova Agenda Urbana transformadora.

(*) Haroldo Pinheiro, arquiteto e urbanista, é presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR).

(**) Artigo publicado inicialmente no Jornal o Estado de S. Paulo.

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