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Quando se quer saber o que é ser professor universitário

Por Julio Groppa Aquino (*) | 14/09/2016 14:36

Há vinte anos era publicada na Revista Brasileira de Educação, periódico da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, uma entrevista – a nosso ver, histórica – com o sociólogo francês François Dubet, pesquisador do Centre national de la recherche scientifique e professor titular da Universidade de Bordeaux II.

No depoimento concedido às professoras Marilia Sposito e Angelina Peralva, ambas ligadas à Faculdade de Educação da USP, Dubet dá a conhecer suas reflexões sobre a juventude francesa de então e, em particular, o saldo de uma experiência sua como professor de história e geografia em um colégio público da periferia de Bordeaux.

O sociólogo queria testemunhar in loco aquilo de que os professores secundaristas tanto se queixavam. Com uma ponta de soberba, supõe-se, o iminente pesquisador queria testar sua superioridade analítica sobre aquela dos colegas do ensino básico. Da presunção à queda, não foi necessário nada além de um passo.

Primeira constatação: a flagrante indisposição dos alunos para cumprir seu papel esperado. Segunda: era preciso ocupá-los constantemente, colocar ordem, organizar o quebradiço setting pedagógico. A terceira e mais surpreendente constatação: foi inevitável aplicar um golpe, assim descrito: “Eu disse: ‘vocês vão colocar as suas agendas, a caderneta em que se colocam as punições, no canto da mesa, e o primeiro que falar, eu escrevo a seus pais, e ele terá duas horas de castigo’. E durante uma semana foi o terror; eu puni. De fato, facilitou a minha vida. E tenho a impressão de que essa ‘crise’ deu aos alunos uma sensação de segurança, já que eles sabiam que havia regras, eles sabiam que nem tudo era permitido. Depois, as relações se tornaram bastante boas com os alunos e bastante afetuosas”.

Para Dubet, em que pesasse o fato de que os expedientes por ele mobilizados representavam um fracasso moral e pedagógico, tratou-se de uma tomada de posição que, bem ou mal, foi capaz de fazer frente à oscilação e à provisoriedade dos pactos em sala de aula, estas a engendrar uma sensação de vulnerabilidade, extenuação e, por fim, desincumbência por parte dos profissionais da educação

A distância temporal que nos aparta da experiência de Dubet em nada oblitera a atualidade do que lá se atestou. Bem ao contrário, se tivermos em conta a lábil paisagem pedagógica não apenas da escola básica, mas também do ensino universitário, assombradas que são pela evidência de que “a relação escolar é a priori desregulada. Cada vez que se entra na sala, é preciso reconstruir a relação”, nos termos de Dubet.

Daí a constatação de que o ethos pedagógico universitário encontrar-se-ia em exasperante transfiguração ou, no limite, sob juízo – a depender do grau de rigor de quem o avalia.

O diagnóstico de uma mutação das pautas de relação entre professores e alunos, bem como dos valores basais que presidem suas escolhas cotidianas, funda-se na hipótese de que estaríamos no epicentro de um amplo processo de desinstitucionalização, atestável também no interior de outros enquadramentos societários.

Isso significa dizer que uma instituição se define como o conjunto de práticas que, a rigor, fabricariam subjetividades por meio da interiorização de rotinas, papéis e valores específicos. A constituição de uma experiência pontual, portanto, mas de lastro duplamente público e privado.

No cenário institucional clássico, a personalidade individual posicionava-se como fundo, ao passo que o papel institucional despontava como figura da experiência institucional. Na contramão disso, “no curso dos processos de desinstitucionalização, a personalidade pensa antes do papel. É ela que constrói o papel e a instituição”, ainda com Dubet.

Pela trilha aberta pelo sociólogo francês, é possível supor que a descontinuidade entre os âmbitos público e privado da vida universitária encontrará sua máxima expressão no fato de os alunos terem, quando muito, de construir por si mesmos o sentido de sua vivência formativa, antes franqueado pela adesão mais ou menos estável a lugares e papéis canônicos. Desaparece o velho sujeito da disciplina, entra em cena o indivíduo empreendedor de si. Desaparecem os velhos professores, entram em cena os gestores da aprendizagem alheia.

Soma-se, ainda, um último elemento a tal equação: aquilo que, de modo cambaleante, poderíamos denominar democratização universitária. Com o ingresso de representantes de segmentos sociais antes alijados do contexto universitário, novas inflexões se afiguram àqueles profissionais que tomam para si algo além de um mero ensejo excludente, este sob a alegação de um tal zelo por uma quimérica excelência do ensino, agora supostamente arruinada por esses novos personagens a perambular pelos campi universitários, tratando-se de deixá-los perecer à míngua acadêmica.

A tais profissionais, cabe-nos relembrar algo que o sociólogo define de modo lapidar: professores dignos de seu ofício não se forjam pelo apego a métodos mais, ou menos, up to date, nem os resultados de sua ação se perfazem a reboque de sua experiência acumulada, de seu gênero, tampouco de suas inclinações ideológicas.

É algo de outro quilate que aí se passa, segundo Dubet: “Os professores mais eficientes são, em geral, aqueles que acreditam que os alunos podem progredir, aqueles que têm confiança nos alunos. Os mais eficientes são também os professores que veem os alunos como eles são e não como eles deveriam ser”.

Em suma, mais espessura ético-política do encontro pedagógico, consubstanciada em um duplo gesto: de um lado, a oferta de formas narrativas laboriosas, sequiosas de uma reapropriação inventiva dos saberes acumulados; de outro lado, a construção conjunta de regras de trabalho e de convívio que, não obstante constritivas, vislumbrassem certa expansão estilístico-existencial a emanar do próprio aqui-agora de uma sala de aula – este pequeno universo em franca expansão, ou não.

(*) Julio Groppa Aquino é professor titular da Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo)

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