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Quem rouba pouco é ladrão, quem rouba muito é barão

Por Luiz Flávio Gomes (*) | 21/05/2015 10:54

No Distrito Federal, no dia 13/5/15 (dia da abolição da escravatura, que ainda não acabou, evidentemente), o eletricista pobre e desempregado Mário Ferreira Lima, que vive atualmente de Bolsa Família (R$ 70), tentou subtrair 2 kilos de carne de um supermercado. Foi preso e autuado em flagrante. O delegado fixou fiança (impagável, pelas condições dele) de R$ 270. Nove empreiteiros (15 dias antes), que se encontravam presos em Curitiba (PR), por força dos desvios de bilhões apurados na Operação Lava Jato, foram liberados pelo STF (no dia 28/4/15) sem a fixação de nenhuma fiança. De quem não pode pagar nada o sistema penal exige dinheiro para ser liberado (é ridículo isso, do ponto de vista do valor justiça). De quem pode pagar tudo o sistema não exige o pagamento de milhões em fiança. A irracionalidade e a desproporcionalidade na aplicação da lei penal no Brasil (que não tem a mínima consciência do que é igualdade de todos perante a lei) são brutais. Nem sequer num bando de macacos (que os cientistas afirmam serem nossos primos mais próximos – veja Yuval Noah Harari, Sapiens – Uma breve história da humanidade) se vê tamanha injustiça (e incongruência). A cada dia que passa mostramos que somos seres inteligentes e também, como diria Edgar Morin, demens!

Mas por que as coisas funcionam assim no Brasil? Porque, consoante nossos costumes e cultura (lamentavelmente ainda muito desigual, racista, machista, patriarcalista, patrimonialista etc.), somente quem rouba pouco é tratado como ladrão. Quem rouba muito (sobretudo o patrimônio público) é tido como barão (ou senador ou deputado ou governante ou presidente de grandes empresas ou alto funcionário público etc.). Todos das classes dominantes (incluindo suas bandas podres) são tratados como cidadãos (porque são os donos do poder: pelo dinheiro, pelo status, pela hierarquia social etc.). Os membros das classes populares e marginalizadas são considerados “inimigos”. Uns poucos privilegiados pelo sistema são incluídos no rol dos “muy amigos” (por exemplo, quando um juiz segura um processo criminal para se alcançar a prescrição do crime desse “muy amigo”).

Algumas frases (de autoria duvidosa) exprimem essa ideia: “Aos amigos os favores, aos inimigos a lei” (Maquiavel); “aos amigos tudo, aos inimigos a lei” (Getúlio Vargas). Ou seja: aos amigos os favores, incluindo os que estão na própria lei (foro privilegiado, por exemplo), e aos inimigos os seus dissabores, mesmo quando não seria o caso de aplicá-los.

O eletricista Mário Ferreira Lima jamais deveria ter sido “preso em flagrante”. Por força do princípio da insignificância, amplamente reconhecido pela jurisprudência do STF, particularmente no HC 84.412-SP (convenhamos, 2 kilos de carne para um supermercado é algo de ninharia), o que ele fez é fato atípico (não é crime). A insignificância exclui a tipicidade material, logo, o crime.

Isso não significa que devemos concordar com seu deplorável comportamento nem que ele não responda por nada. Mas entre uma reprimenda proporcional (elaboração de um boletim de ocorrência, uma advertência verbal, o desprazer de ser conduzido a um distrito policial etc.) e uma prisão em flagrante, com fixação de fiança (a quem não pode pagá-la), há uma distância enorme. A injustiça (a falta chocante de bom senso) foi tão gritante que os próprios policiais se reuniram para pagar a fiança (e ainda fizeram uma compra de supermercado para ele, quando constataram sua absoluta miserabilidade). Nesses casos a autoridade policial deve elaborar um mero boletim de ocorrência para registrar os fatos. Em juízo tudo será arquivado (por se tratar de fato penalmente irrelevante). Falta lei no Brasil para regular a insignificância. Daí a aplicação muitas vezes desarrazoada e enviesada da lei penal (que é mais reveladora do que tudo sobre a legitimação das desigualdades, que permite a muitos que estão “no andar de cima” licenças para roubar quase sempre impunemente).

(*) Luiz Flávio Gomes, advogado

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