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Saúde Mental no SUS e o debate sobre os “leitos psiquiátricos”

Por André Barciela Veras (*) | 04/03/2016 12:14

Na última semana, diversas reportagens foram veiculadas sobre a assistência pública de Campo Grande no campo da Saúde Mental. Em um formato de denúncia, as críticas tendem primeiro a recair sobre um sistema público precário e negligente, como na maior parte das reportagens atuais que seguem o editorial do “caos na saúde”.

Mas, no que se refere à particularidade da Saúde Mental, a discussão sempre acaba migrando para o conflito entre a política pública proposta pelo Ministério da Saúde para a área versus a defesa da necessidade dos leitos psiquiátricos. Uma das reportagens traz como manchete que a “Situação dos leitos para psiquiatria na rede pública preocupa” e é anunciada da seguinte maneira: a apresentadora descreve como já é difícil para a família manter o tratamento dospacientes com problemas mentais e diz que “...a situação piora quando o atendimento deixa de existir. É o que vem acontecendo com relação a tratamentos psiquiátricos aqui em Campo Grande.”

Evidencia-se aí uma compreensão da sociedade, que, por motivos históricos, relaciona a existência de tratamentos psiquiátricos com a disponibilidade de leitos hospitalares, de hospitais psiquiátricos, de manicômios e hospícios. Tal relação é um equívoco e deve ser revista pelos meios de comunicação para um aprofundamento da discussão sobre a Saúde Mental por nossa comunidade.

Isto porque, desde a época em que no Brasil os recursos financeiros eram majoritariamente investidos nos hospitais psiquiátricos, que a maioria dos tratamentos se dava fora deles, em ambulatórios e consultórios. Mas para além disso, uma mudança importante proporcionada pelo movimento da reforma psiquiátrica brasileira, surgida nos anos 70 e adotada como política nacional desde os anos 90, foia nova atenção às pessoas com problemas mentais graves que ficavam frequentemente ou permanentemente internadas nos hospitais.

A unidade de saúde que representa esta mudança é o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), que tem a função de gerenciar o atendimento aos problemas mentais da população de uma determinada área da cidade. Para isto, o CAPS irá trabalhar com uma rede de saúde, providenciando os recursos necessários para o atendimento de cada caso. Diante de casos de maior complexidade, o CAPS poderá providenciar os meios para uma internação em um leito hospitalar.

Mas, sendo o CAPS um dispositivo do SUS, norteado pelos princípios de atender todos os cidadãos em todas as suas necessidades de saúde de forma igual/não discriminatória, sempre que possível tal internação deverá ser realizada em uma unidade de saúde onde todas as pessoas que apresentam algum problema médico habitualmente se internam, como Unidades de Pronto-atendimento (UPAs) e Hospitais Gerais (ex. Santa Casa de Campo Grande e Hospital Regional).

Uma vez que os pacientes são internados nestas unidades, o CAPS deve manter a sua função de reponsabilidade pelo caso, providenciando meios para receber o indivíduo de volta no seu território e comunidade da forma mais ágil possível. Sendo a política pública de saúde mental responsável não apenas pelo financiamento do CAPS, mas também pelas ações da rede de saúde que atendem os problemas mentais, o ministério da saúde incentiva financeiramente a abertura de leitos para internação psiquiátrica no SUS, mas, baseado nos princípios já citados para o SUS, determina que estes leitos devem ser implementados nos hospitais gerais. A concretização dessa política, com a utilização dos respectivos recursos, é função do município.

Conhecendo estes aspectos básicos da política brasileira de saúde mental, a sociedade pode entender com clareza que não é pela redução de leitos nos hospitais psiquiátricos que o “atendimento deixa de existir” e que não há uma oposição entre a política nacional de saúde mental e a necessidade de leitos para eventuais internações. A reforma psiquiátrica reconhece a necessidade de leitos, mas também de tratamentos que protejam o indivíduo e o mantenham inserido em seu ambiente familiar de forma saudável, o que faz com que os recursos financeiros devam ser distribuídos de maneira reformada e melhor equilibrada para um atendimento mais eficiente e menos hospitalar, mais preventivo e menos redutor de doenças instaladas, mais comunitário e menos excludente.

É partindo deste entendimento que cada comunidade local deve discutir a situação da saúde mental de sua cidade, para que não continuemos cobrando dos governantes que estes reconstruam os hospitais psiquiátricos. Devemos cobrar dos gestores da saúde (governo e prestadores de serviços ao SUS) que avancem, que apliquem a totalidade dos recursos destinados à rede de saúde, que implementem os incentivos para leitos na saúde mental e que atendam as pessoas de forma eficiente.

Ou seja, devemos cobrar que se cumpra a política de saúde mental atual. Como pesquisador da saúde, professor de medicina de um curso inserido no SUS e psiquiatra de um CAPS, observo que a saúde mental de Campo Grande está avançando significativamente para um atendimento moderno ao usuário do SUS. Isto não significa que a assistência não deva continuar a ser ampliada e aperfeiçoada no município.

Dificuldades no manejo de casos complexos existem e sempre existiram. Pacientes evadem do CAPS assim como sempre evadiram dos hospícios. Também é certo quenão podemos nos conformar e nunca nos conformamos com asnecessidades de cuidado nas quais somos impotentes, e é por isso que buscamos e sempre buscaremos avançar em nossas práticas de cuidado, nunca regredir. Em uma trajetória de avanço, a rede de saúde mental de Campo Grande tem atendido as pessoas de forma cada vez mais eficiente, contando com leitos nos CAPS e articulando com hospitais de maneira suficiente.

Quando pacientes não conseguem ir ao CAPS, o CAPS pode ir a ele. Quando os pacientes apresentam situações de emergência e são inicialmente recebidos nos UPAs, estes são logo encaminhados para leitos especializados. Sendo o número de vagas suficiente e eficiente, não há represamento destes pacientes nas emergências da cidade neste momento. Diante deste cenário, reforço o apelo para que a sociedade e suas instituições fiscalizem e cobrem a implementação de avanços no lugar de atuar como forças contrárias ao humanismo e à modernidade.

(*) André Barciela Veras é psiquiatra responsável técnico pelo CAPS Vila Almeida, em Campo Grande, doutor em Psiquiatria pela UFRJ, docente permanente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Saúde da UCDB, professor titular da Faculdade de Medicina da Uniderp.

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