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Saúde pública na UTI

Por Ruy Martins Altenfelder Silva (*) | 04/12/2014 13:40

Primeiro centro de tratamento de esclerose múltipla do país. Maior cadastro de doadores de medula óssea. Hemocentro que abastece nove hospitais. Referência em atendimento de emergência, ortopedia, pediatria e serviços de alta complexidade, como neurocirurgia e transplante. Núcleo de ensino com relevantes pesquisas técnico-científicas. Esse rápido perfil retrataria à perfeição um complexo hospitalar de primeiro mundo. Mas esse é lado bom da moeda. Na realidade, o cenário revela a enorme capacidade da Santa Casa de São Paulo em driblar dificuldades e obter significativos resultados num Brasil que nunca deu à saúde a prioridade devida e nem se preocupou em assegurar a igualdade de qualidade no atendimento aos pacientes da rede pública.

Aliás, a percepção da precariedade da saúde pública pela sociedade foi novamente confirmada por pesquisa realizada pelo Datafolha, em meados de 2014, a pedido do Conselho Federal de Medicina (CFM) e da Associação Paulista de Medicina (APM), que quis ouvir a opinião dos maiores interessados na questão, que são os cidadãos. Embora não traga nenhuma surpresa, as conclusões são, no mínimo, preocupantes: 63% atribuem nota de zero a quatro à saúde como um todo e 51% assim classificam o atendimento do Sistema Único de Saúde(SUS). Destaque-se que 94% dos entrevistados buscaram atendimento no SUS nos últimos dois anos.

Embora restrita aos paulistas, os números da pesquisa apenas confirmam a percepção dos médicos, dos profissionais da saúde e dos pacientes e evidencia a fragilidade das políticas públicas para a área e os gargalos de gestão, analisam Desiré Callegari, secretário do CFM. A nota da entidade é mais contundente, ao afirmar que tais fatores denunciam o descompromisso dos gestores, especialmente em nível federal, para com a rede pública de saúde, como revelado em diferentes análises do Tribunal de Contas da União e da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.

Um dos mais graves problemas apontados é a dificuldade de acesso a prontos-socorros, situação inaceitável que se repete nas consultas, cirurgias e exames diagnósticos, havendo pacientes que esperam há mais de um ano por atendimento em consultório, por exemplo. O conselho destaca também, como grave distorção, o fato de que 47% têm dificuldade de acesso a pronto-socorro, que é a porta de entrada e de triagem para a utilização dos restantes serviços da rede pública de saúde. No quesito internação, 50% reclamam de demora excessiva – o que não é de estranhar, pois 13 mil leitos foram desativados nos últimos anos.

Nesse cenário de precariedade, quando foi noticiado o fechamento do pronto-atendimento da Santa Casa de São Paulo a informação caiu como uma bomba, por trazer à tona a ameaça que paira sobre quase todas as misericórdias do país: a insustentável defasagem entre os repasses que recebem do SUS e os custos dos serviços que prestam gratuitamente, como entidades filantrópicas, o que gera crescentes déficits e risco de corte de entrega de medicamentos e outros produtos médicos pelos fornecedores. A falta de recursos para pagar encomendas de materiais básicos foi a causa que levou à suspensão do pronto atendimento da Santa Casa de São Paulo, instituição que há mais de 450 anos está em funcionamento. Aliás, prestando serviços que podem ser classificados, sem exagero, como inestimáveis: 1,6 milhão de atendimentos ambulatoriais, 2 milhões de atendimentos de emergência, 49 mil cirurgias e 6,2 milhões de exames. Conta aproximadamente com 2 mil leitos e quase 13 mil colaboradores (incluindo médicos e residentes), constitui um complexo de 13 hospitais, 2 policlínicas, 3 prontos-socorros municipais e 11 unidades básicas de saúde (UBS’s) – divididos entre próprios ou administrados no sistema organização social de saúde. Esses números se referem a 2013, e não deixam dúvida de que a Santa Casa de São Paulo é o maior hospital filantrópico do país, atendendo diariamente uma média de 8 mil pessoas.

Ressaltando que os hospitais filantrópicos respondem por mais da metade dos atendimentos realizados pelo SUS, o CFM alinha-se aos que defendem soluções práticas e inadiáveis para conter a crise. Entre as medidas que, pelo menos, deveriam estar em estudo, incluem-se programa de renegociação das dívidas das filantrópicas (a exemplo de medidas que o governo federal já adotou para outros setores, como o empresarial) e reposição parcial ou total das perdas acumuladas em anos anteriores; agilização do sistema de repasse de pagamentos (hoje há demora de meses entre o atendimento e a chegada do dinheiro público); revisão e adequação da tabela do SUS à realidade dos custos do atendimento médico-hospitalar; oferta de linhas de financiamento favorecidas para os hospitais filantrópicos (novamente a exemplo do que é feito a outros setores).

É cada vez mais urgente a revisão da política pública de saúde, para evitar a repetição da crise que o CFM, em nome de 400 mil médicos, chama de “mais um episódio dramático na história da saúde pública brasileira”. Crise que pode prejudicar milhões de pessoas por ano, incluindo aqueles que viajam de rincões remotos em busca de tratamento adequado oferecido pelos hospitais filantrópicos. Crise que também pode se agravar com a pressão dos milhares de pacientes que estão abandonando os planos de saúde complementar, por questão de custo e queda de qualidade no atendimento particular, e engrossam as filas às portas estreitas da rede pública de saúde.

(*) Ruy Martins Altenfelder Silva é vice-provedor da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e presidente da Associação Paulista de Letras Jurídicas.

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