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Supremo tem exercido ativamente o seu papel político

Por Maria Tereza Sadek* | 18/12/2011 08:05

A crescente proeminência política do Judiciário torna anacrônica a constante referência a Montesquieu. Em 1748, o barão francês escreveu que “dos três poderes, o de julgar é de algum modo nulo” (Do Espírito das Leis, II, cap. VI). Esse poder, encarregado de proferir sentenças, de acordo com leis elaboradas pelo Legislativo, deveria ser ocupado por mandatários desprovidos de interesses e de partidarismos, com a incumbência de ser a “boca da lei”.

Tais atributos afastavam por completo os juízes da vida política, construindo uma identidade completamente refratária a injunções extralegais. Neste contexto, pouco espaço — se é que algum — restava para divergências interpretativas ou para a confluência de fatores como o contexto social e político, a ideologia, atributos ou constrangimentos de natureza institucional no processo de tomada de decisão.

O Judiciário contemporâneo, especialmente aquele resultante da arquitetura institucional presidencialista, como bem apontou Tocqueville na primeira metade do século XIX, após sua visita aos Estados Unidos, transformou-se em um protagonista de primeira grandeza. Em sua obra Democracia na América, ele ressalta o lugar de destaque do Poder Judiciário na sociedade norte-americana. A influência de juízes, afirma Tocqueville, se estende da ordem civil à política, exercendo controle sobre os outros poderes, graças à sua possibilidade de examinar a constitucionalidade de leis e atos do Executivo e do Legislativo.

O modelo de Judiciário adotado no Brasil inspira-se em grande parte naquele que caracteriza a democracia presidencialista norte-americana. De fato, a Constituição de 1988 conferiu à instituição atributos de poder, admitindo que magistrados avaliassem a constitucionalidade de leis e atos normativos. Ademais, uma vasta gama de direitos e temas foi constitucionalizada, aumentando significativamente a possibilidade de judicialização e consequentemente de participação do Judiciário.

Nos últimos anos, dificilmente se encontrará uma questão marcante, que tenha tido impacto no âmbito político e/ou das relações privadas que o Judiciário não tenha participado. Temas de alto impacto na vida do país constam atualmente da agenda do Supremo Tribunal Federal, como a criação de cotas raciais, a interrupção de gestação de fetos com anencefalia, ocupação de terras por quilombolas. Esses exemplos poderiam ser multiplicados. O exame do que tem ocorrido permite afirmar que essa característica do modelo institucional brasileiro imprimiu uma feição política ao Judiciário, propiciando que atue, de fato, como poder.

Nesse contexto, torna-se extremamente relevante conhecer a instituição e seus integrantes. Suas decisões extrapolam a resolução de conflitos entre indivíduos ou entre indivíduos e o poder público. Afetam políticas públicas, abrangem questões culturais, alcançam temas relacionados às relações sociais.

O livro recém publicado de Fabiana Luci de Oliveira apresenta uma contribuição valiosa para esse conhecimento. Em Justiça, Profissionalismo e Política — o STF e o controle da constitucionalidade das leis no Brasil (Rio de Janeiro: FGV, 2011) a autora analisa o processo de decisão judicial, examinando a forma como os ministros se comportam no exercício do controle da constitucionalidade das leis.

Questões de natureza teórica são apresentadas e temas relacionados à identidade do Judiciário e à sua atuação são problematizados. Assim, Fabiana Luci de Oliveira, utilizando-se da literatura mais recente, discorre sobre a relação entre Direito e política, o papel do profissionalismo, a singularidade da legitimidade da arena judicial para o debate de temas que envolvem diferentes setores da sociedade.

As evidências empíricas levantadas, a partir da análise de 300 Ações Diretas de Inconstitucionalidade julgadas pelo STF entre outubro de 1988 e março de 2003 permitem que a autora sustente e comprove seu argumento segundo o qual no “processo de decisão judicial direito e política se encontram imbricados”, e o profissionalismo atue como um fator de diferenciação dos ministros do STF em relação aos outros atores políticos.

Fabiana cria um modelo analítico combinando abordagens típicas da judical politics (atitudinal, estratégica, institucional e legal) com elementos da sociologia das profissões. Trata-se de análise sofisticada, que valoriza tanto fatores legais, como variáveis relacionadas à trajetória de carreira dos ministros, aspectos da socialização na profissão, além de preferências políticas e pessoais, constrangimentos sociais, institucionais e políticos, princípios morais e políticos. Em poucas palavras, o processo de decisão judicial é examinado levando em conta a inter-relação de fatores legais, extralegais e profissionais.

O resultado é um estudo inovador, que apresenta um retrato do Supremo até então bastante desconhecido. Com base em sofisticada pesquisa quantitativa e qualitativa é desenhado um quadro sobre o processo de decisão no período em estudo. O conjunto de elementos permite visualizar um cenário caracterizado por um alto grau de consenso entre os ministros. Bastaria realçar que mais de 80% das ações obtiveram uma decisão unânime. Esta descoberta fundamenta a interpretação de Fabiana de que “apesar das diferenças na trajetória de carreira e no perfil de atuação, o profissionalismo prevalece, unindo os ministros em torno de decisões comuns”.

Sustenta ainda a autora que o fato do STF ter deferido mais da metade das ações julgadas é um indicador de que a Corte tem exercido ativamente seu papel político, não se esquivando de interferir nas políticas públicas, nas iniciativas governamentais, quer de âmbito estadual quer federal, nem tampouco a instituição tem deixado de revisar decisões tomadas por outras instâncias judiciais.

Justiça, Profissionalismo e Política é um livro indispensável. Sua leitura enriquece o conhecimento sobre o Supremo, sobre seus ministros e especialmente sobre o processo de tomada de decisões. Decisões imperativas tanto para o poder público como para as relações sociais.

(*) Maria Tereza Sadek é doutora em ciência política, professora do Departamento de Ciência Política da USP e diretora de pesquisa do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais.

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