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Todos falam em ética; depois se esquecem dela

Por Dante Filho (*) | 05/01/2015 14:17

Li o discurso de posse de Dilma. Fui ao google e tive a pachorra de ler os pronunciamentos dos governadores eleitos. Um ponto em comum: todos, sem exceção, prometeram combater a corrupção e fazer um “governo ético”. Nas fotos oficiais, olhando grosso modo os ministros e os secretários de estado, uma imagem é incontornável: temos a sensação de que a presidente e os governadores estavam cercados por verdadeiras alcatéias sedentas de sangue. É muito complicado prometer lisura tendo ao lado alguns parceiros sabidamente comprometidos com coisas pouco republicanas.

Mas vamos dar um desconto. Às vezes exageramos nas nossas desconfianças. Mesmo assim, olhando com lupa os acontecimentos recentes, faço um esforço para projetar meu olhar para frente e ficar imaginando o que acontecerá mais tarde, quando os despojos da festa de posse forem apenas lixo e memória difusa. No fundo musical de minha mente teimosa, bate aquele refrãozinho da música do Cazuza dizendo “eu vejo o futuro repetir o passado”.

Não quero ser estraga-prazeres. Mas o combate à corrupção e o compromisso com a ética são apenas manifestações generosas dos governantes para os governados, inscritas numa carta de intenções na qual um pouco de fantasia faz-se necessário para suportar a dura realidade da vida. Cada um deles sabe perfeitamente que o sistema político atual nutre-se na corrupção para sobreviver.

A questão ética é mais complicada ainda. Coteje as obras de Spinoza, Aristóteles e Maquiavel e responda depois se a palavra “ética” na boca de nossas autoridades tem algum significado real que não seja uma mistura de escárnio e demagogia.

Para falar de ética com um mínimo de responsabilidade é preciso percorrer um longo caminho. Não se trata apenas de manifestação de vontade e jogadinhas de marketing. É preciso compreender a natureza dos afetos, do desejo humano perante as coisas mundanas, da lógica do poder, enfim, de como cada ser humano pode ser domado em sua selvageria atávica para aceitar que o caminho da virtude e da solidariedade social é mais produtivo para gerar o bem do que simplesmente ceder à ganância narcísica de ter tudo e todas as coisas somente para si e para seu pequeno grupo.

Numa sociedade desorganizada e desigual como a brasileira a tarefa é quase impossível. Mesmo através dos séculos, com educação e vida de altíssima qualidade, ainda restarão as heranças do atraso e do patrimonialismo.
Depois de ler estas linhas acima, algum espertinho (tomado pelo cinismo) provavelmente perguntará qual caminho restará aos governantes, diante do estado de coisas em que vivemos, senão proclamar boas intenções e pregar boas políticas. Concordo. Falar a verdade – ou seja, que as mudanças apregoadas não acontecerão tão cedo, que a “ética” é somente força de expressão para encantar os moralistas das igrejinhas redentoras do udenismo rastaqüera – não tem o condão de agradar o populacho. Se fizer isso, o governante será chamado de idiota.

Talvez no fundo tudo se resuma a isso: verdade e mentira. O que isso significa em termos políticos?. A última campanha presidencial deixou essa fumaça no ar.

Quando vejo Dilma (e demais governadores) assumirem que não tergiversarão com desvios de condutas, que não permitirão que amigos e partidos aliados surrupiem parte do dinheiro dos impostos, que obras e projetos de urgência não servirão para abrir frestas no trânsito de recursos públicos para os bolsos dos espertinhos e que auditorias e revisões contratuais não servirão apenas a velha política de criar dificuldades para vender facilidades, sinto no fundo da alma que eles apenas estão anunciando uma nova modalidade de saque.

A patuléia fica alegre no primeiro momento. Imagina que esse discurso seja a expressão da verdade. Poderia ser. Mas infelizmente trata-se de apenas peça de marketing. Textos publicitários que aparecem na televisão merecem mais credibilidade porque se a mentira for abjeta o consumidor vai ao Procon e pede o dinheiro de volta. No caso das palavras solenes ditas em ocasiões especiais, a alternativa que resta é apenas a crítica privada e a indiferença com aquilo que se tornou banal.

Mas é bom que não sejamos ingênuos. Assumir compromissos públicos contra a corrupção e a favor da ética tem se tornado, infelizmente, uma espécie de vacina contra os desvios de conduta daqueles que, na máquina pública e fora dela, são escalados para colocar a mão na lama. Se eles forem pegos ou pisarem feio na bola, o governante sempre terá a desculpa pronta na ponta da língua: eu não sabia.

(*) Dante Filho, jornalista (dantefilho@terra.com.br)

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