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Capital

“Juiz não pode ficar refém da opinião pública”, diz desembargador

Carlos Martins | 10/03/2013 10:20
Na Covep, desembargador criminal Romero Lopes esbarrou no principal problema: a superlotação dos presídios (Foto: Marcos Ermínio)
Na Covep, desembargador criminal Romero Lopes esbarrou no principal problema: a superlotação dos presídios (Foto: Marcos Ermínio)

Em seu gabinete, cercado de processos e livros de Direito dispostos sobre sua mesa de trabalho, o desembargador criminal Romero Osme Dias Lopes se depara com os mais variados casos e precisa aplicar a Lei com justiça. Como Garantista assumido, diferentemente do Legalista que segue a letra fria da Lei, ele mostra-se preocupado com questões como a superlotação do sistema penitenciário.

Na coordenação da Covep (Coordenadoria das Varas de Execução Penal), até o mês passado, o desembargador Romero entregou o cargo quando quem o nomeou, o desembargador Atapoã da Costa Feliz, deixou o posto de Corregedor-Geral do TJ. Em entrevista ao Campo Grande News, Romero explica que sua saída também foi motivada pela intransigência do Ministério da Justiça em não liberar recursos que poderiam ser usados para aumentar o número de vagas no sistema prisional. “Fiquei impotente diante das necessidades”, diz, ao falar sobre a postura do ministério.

“Temos a maior população carcerária do País proporcionalmente ao número de habitantes. São em torno de 12 mil presos para uma capacidade que não chega a 7 mil vagas. Temos, portanto, um déficit estimado de 5 mil vagas”, avalia, preocupado porque as projeções indicam um acréscimo de mais dois mil presos em dois anos.

Como Garantista, o desembargador Romero defende a independência do julgador, que não deve se submeter à pressão e virar refém da opinião pública. Quer também a aplicação de penas alternativas para aqueles casos em que o Princípio da Bagatela (casos insignificantes) pode ser aplicado, o que evitaria que os presídios ficassem ainda mais lotados.

Aos 64 anos, natural de Manhuaçu, Minas Gerais, o desembargador Romero Osme Dias Lopes ingressou na Magistratura em 1980 como juiz de Direito na Comarca de Cassilândia. Passou por Aquidauana e Paranaíba até chegar à Capital em 1987 para assumir a Vara de Execução Fiscal da Fazenda Pública Estadual e mais tarde foi designado para a 4ª Vara da Família. Por antiguidade, em 2007 foi promovido ao cargo de Desembargador do Tribunal de Justiça. Desembargador criminal, presidente da Seção Criminal e membro do Órgão Especial do TJ, Romero Osme Dias Lopes também desempenha a função de Coordenador do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul.

Acompanhe, a seguir, os principais trechos da entrevista:

"Fiquei impotente diante das necessidades", diz sobre postura do Ministério da Justiça (Foto: Marcos Ermínio)
"Fiquei impotente diante das necessidades", diz sobre postura do Ministério da Justiça (Foto: Marcos Ermínio)

Campo Grande News - No mês passado o senhor deixou a coordenação da Covep, Coordenadoria das Varas de Execução Penal. Qual foi o motivo?

Desembargador Romero Osme Dias Lopes – A Covep foi criada em julho do ano passado e eu fui designado para a coordenação. A função é de confiança do Corregedor-Geral que faz a nomeação. Com a saída do desembargador Atapuã da Costa Feliz do cargo de Corregedor Geral, me senti na obrigação de colocar o cargo à disposição e no dia 14 de fevereiro pedi meu desligamento da função. Além disso, por também coordenar o Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos, eu estava muito sobrecarregado.

Campo Grande News - O senhor também ficou insatisfeito com a postura do Ministério de Justiça, com as dificuldades impostas para liberar recursos para a ampliação de vagas para o sistema prisional de Mato Grosso do Sul. Isso contribuiu para sua saída?

Romero Lopes – Fiquei impotente diante das urgências, das necessidades. Um convênio de 2011 com o Ministério da Justiça previa a liberação de R$ 7,2 milhões com contrapartida do Estado. O dinheiro seria usado para a criação de 685 novas vagas com a ampliação dos presídios de Aquidauana, Dois Irmãos do Buriti, Naviraí, Três Lagoas e Ponta Porã. Só que houve uma alteração que causou uma sobrecarga no governo estadual. Com a Resolução nº 3, de 2005, do Conselho Nacional de Políticas Criminal e Penitenciária, que previa algumas exigências, a contrapartida do Estado era de R$ 2,2 milhões. Só que as exigências aumentaram com a mudança para a Resolução nº 9, de 2011, e a contrapartida do Estado passou para R$ 14 milhões. Nosso Estado é pobre, não tem condições de arcar com este valor.

Campo Grande News – O governador André Puccinelli tem se empenhado junto ao Ministério da Justiça, mas até agora não saiu uma solução.

Romero Lopes - Tenho acompanhado essa luta, mas o Ministério da Justiça está irredutível. Sem o atendimento da Resolução nº 9, nada feito. Mas há uma sinalização de que a questão é política. De que a Casa Civil está por trás da Resolução nº 9. Então o caminho passa, também, por uma solução política.

"O trabalho de ressocialização é muito bem feito no Estado" (Foto: Marcos Ermínio)
"O trabalho de ressocialização é muito bem feito no Estado" (Foto: Marcos Ermínio)

Campo Grande News - Como era sua atuação na Covep?

Romero Lopes – A função tem por atribuição controlar e fiscalizar o sistema carcerário, de sistematizar a regionalização das varas de execução instaladas nas comarcas que possuem presídio ou cadeia pública e fazer o remanejamento de presos dentro de um reordenamento mais sensato. A triagem é feita pela Agepen [Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário] levando em conta a disponibilidade de vagas, a periculosidade do preso, e a coordenadoria faz as alocações dos presos, remoções.

Campo Grande News – Qual foi o principal problema que o senhor detectou?

Romero Lopes – A superlotação. O trabalho de ressocialização é muito bem feito no Estado. Temos detentos trabalhando, estudando. A Gameleira [Centro Penal Agroindustrial da Gameleira] é um exemplo nacional. Quando o Estado faz um bom trabalho policial, de reprimir o tráfico de drogas no transporte, porque o malefício é o uso, nós evitamos que a droga chegue aos maiores centros, como são Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás. Entretanto, nós ficamos com o preso, com o processo, com a responsabilidade da ressocialização do preso, da família do preso que vem para cá, porque 90% dos presos que temos aqui são de fora.

Campo Grande News - Quantos presos têm hoje no sistema prisional?

Romero Lopes – Temos hoje a maior população carcerária do País proporcionalmente ao número de habitantes. São cerca de 12 mil presos para uma capacidade que não chega a 7 mil vagas. Temos, portanto, um déficit estimado de 5 mil vagas. Só que se estas 685 novas vagas fossem criadas, daqui a dois anos, neste espaço de tempo teríamos mais dois mil presos que é a projeção da Secretaria de Segurança Pública para os próximos dois anos e chegaríamos a 14 mil detentos. Cerca de mil presos estão em delegacias e nesse universo de 12 mil presos, 40% são presos preventivos.

"Estado tem hoje a maior população carcerária proporcionalmente ao número de habitantes" (Foto: Marcos Ermínio)
"Estado tem hoje a maior população carcerária proporcionalmente ao número de habitantes" (Foto: Marcos Ermínio)

Campo Grande News - Nosso Estado é um corredor de droga e há muitas prisões por tráfico internacional. A União tem ressarcido o Estado pelos custos com presos federais, que deveriam ser custodiados pelo governo Federal?

Romero Lopes - Dos 11 Estados fronteiriços, Mato Grosso do Sul é o que mais faz a apreensão de drogas. Das 90 toneladas apreendidas de janeiro a outubro do ano passado, nosso Estado apreendeu 80 toneladas. Aqui é o corredor da droga no País e isso me preocupa muito. Dados de agosto do ano passado indicavam que havia no sistema prisional cerca de 1.250 presos federais. O governador Puccinelli mandou um oficio para o Ministério da Justiça onde estima o gasto com preso federal de R$ 1,4 mil. A média anual de gasto é de R$ 20 milhões e desde que foi criado o Funpen [Fundo Penitenciário Nacional], nos recebemos nestes 17 anos cerca de R$ 30 milhões, o que não dá nem R$ 2 milhões por ano. Se nós pegássemos estes 20 milhões que gastamos por ano, resolveríamos nossos problemas.

Campo Grande News - E não existe nenhuma sinalização de que o Governo Federal assuma a totalidade destes gastos. Alguma medida pode ser tomada a este respeito?

Romero Lopes – Eu propus ao Ministério Público Federal e ao Estadual que estudem a viabilidade de entrar com uma ação contra a União para ser ressarcido e mandei a documentação para eles. Mas saí da Covep e não tenho informações quanto ao andamento desta questão.

Campo Grande News - Os problemas tendem a se agravar porque aumentam as apreensões de droga e, consequentemente, o número de presos.

Romero Lopes - Exato. E tem outro tipo de crime que aumenta a sobrecarga. São veículos furtados em São Paulo, Minas Gerais ou outro Estado, e que são recuperados e devolvidos para o proprietário e nos ficamos com o processo, o preso, e a família do preso. É o inverso, nós combatemos o resultado do crime que ocorreu lá em São Paulo, devolvemos o veículo e ficamos com o preso e o processo.

Campo Grande News - O senhor defende o tratamento diferenciado para as chamadas “mulas”, que fazem o transporte de droga, em geral, em pequenas quantidades. Seria uma maneira de diminuir a superlotação.

Romero Lopes – A "mula", em sua maioria, é refém da condição precária. São induzidas pelo namorado, pelo companheiro. Oitenta por cento das mulheres presas no presídio feminino é por tráfico de drogas e a maioria por pequena quantidade. São primárias, tem bons antecedentes, e a quantidade é pequena. A gente permite que responda o processo em liberdade e, se eventualmente for condenada, tem a substituição da pena. Também é isso que o STF [Supremo Tribunal Federal] tem entendido.

"A ´mula´ é refém da condição precária" (Foto: Marcos Ermínio)
"A ´mula´ é refém da condição precária" (Foto: Marcos Ermínio)

Campo Grande News - Como é o entendimento aqui no Tribunal de Justiça?

Romero Lopes – Temos aqui oito desembargadores criminais e as opiniões são divididas. Às vezes o resultado numérico é contra. A quantidade é preponderante. Os que dão o benefício só o fazem quando a quantidade é pequena. O percentual que a gente dá, não é elástico, como deveria. Nós somos pioneiros. Quando eu decidi pelo benefício, dei uma entrevista. Recebi alguns e-mails e telefonemas de conhecidos me dizendo: você está sempre na vanguarda. Logo em seguida o STF veio com o mesmo entendimento. Fiquei muito feliz.

Campo Grande News – Por que este entendimento não é aplicado de forma sistemática?

Romero Lopes - Aí que está a questão. Não tem força vinculante [a decisão do STF]. Em cada TJ tem a independência do julgador. Eu acho que deveria ter para dar segurança jurídica, mas não tem. Não só neste caso, mas em outros acho que deveria uniformizar. Mas como uniformizar a jurisprudência? Vou citar um caso. Uma mulher foi presa em Rio Verde com 20 CDs e 12 DVDs piratas em sua banca. Estava vendendo em uma banca onde tinha jornais, onde até o juiz comprava suas revistas. Ela foi condenada há dois anos pelo juiz local, aí recorreu para o TJ. Quando peguei este processo, já estava dois a zero contra ela e eu fui substituir em outra Câmara. A relatora votou contra e o outro desembargador acompanhou. Eu pedi vistas e o que já tinha acompanhado a relatora voltou atrás. Aí ficou 2 a 1 a favor da mulher. Nesse caso apliquei o Princípio da Bagatela [ou insignificância]. Vale dizer que o Judiciário não pode perder tempo com uma situação desta, uma vez que a própria sociedade admite, aceita, todo mundo faz download, é uma hipocrisia.

Campo Grande News - Mesmo condenada, ela não cumpriria pena, mas ficaria marcada.

Romero Lopes - Ficaria eternamente. Se quisesse fazer um concurso público não poderia. Ela tinha dois filhos para cuidar. Tirava o sustento dela e dos filhos daquela banquinha. Eu pergunto: a quem interessa essa condenação? O que a sociedade ganha condenando esta mulher? Ela vai perder uma trabalhadora, que está alimentando duas crianças. No Direito Penal tem que ter magnanimidade, você tem que julgar com nobreza, nobreza de sentimento, nobreza de espírito, nobreza na aplicação da justiça. Justiça não é o Direito. Direito é o que a lei fala.

Campo Grande News - Existe uma linha de magistrados que seguem à risca a letra fria da lei. Outros adotam postura diferente. Isso tem relação com o preparo, estudo, vivência do futuro julgador?

Romero Lopes - Embora nós tenhamos uma Escola Judiciária até boa, a formação ainda é falha no País inteiro, porque nós não temos uma escola de magistrados. O que temos é um concurso público de provas e títulos. Aí é o advogado que tem dez anos de advocacia, já foi professor, passa no concurso e ingressa na magistratura como juiz substituto. Ele tem nessa função um período de dois anos no qual deveria, por exemplo, estudar filosofia. Aí teria uma formação mais humanística. Isso é o Garantismo.

"O Garantismo é o respeito aos mandamentos constitucionais"  (Foto: Marcos Ermínio)
"O Garantismo é o respeito aos mandamentos constitucionais" (Foto: Marcos Ermínio)

Campo Grande News - O senhor é um Garantista?

Romero Lopes - Eu sou. O que é o Garantismo? É o respeito aos mandamentos constitucionais. O cara pratica o tráfico de drogas, mas a lei não distingue a quantidade. Ele tem dez gramas de cocaína e isso induz pensar, pela quantidade, que ele não faz parte de uma organização. O que fazemos? Damos a ele o direito constitucional de responder em liberdade. Só que a maioria não dá, porque eles têm medo da opinião publica. O que o juiz não pode é ficar refém da opinião pública, amplificada pela mídia e pelo Ministério Público. O Juiz tem que ser independente.

Campo Grande News – E se ele segue a letra fria da lei?

Romero Lopes - Aí ele não é Garantista, é Legalista. O Garantista tem que ser orientado pelos princípios constitucionais. Primeiro tem que ter razoabilidade, o principio da proporcionalidade. São todos princípios constitucionais e alguns deles não estão nem expressos na Constituição. Eles pairam no ar. Por exemplo, o principio de julgar com justiça, com equidade, pela forma equânime que interessa a toda a sociedade, usando, repito, a proporcionalidade. Você acha proporcional dar dois anos para àquela mulher dos DVDs? Teve o caso de uma empregada doméstica, que eu não julguei, que pegou seis anos porque estava com 300 gramas de maconha dentro de um ônibus. O cara, que era patrão da mulher veio falar comigo, descrente com o Poder Judiciário, porque ele viu naquilo ali uma iniquidade, uma arbitrariedade. Só que não é arbitrário, é legal. É a diferença entre respeitar um texto frio da lei, e ser um Legalista, e utilizar aqueles outros princípios que estão na Constituição e alguns nem estão escritos, e ser um Garantista.

Campo Grande News - Existem críticas ao Código Penal atual, em vigor há 70 anos, principalmente quando pessoas acusadas de crime se safam da prisão ou ficam em liberdade até o julgamento. A expectativa é que em junho o projeto do novo código seja levado ao plenário, no Senado, para ser votado. Qual sua avaliação sobre a reforma?

Romero Lopes – Primeiro a questão penal analisada à luz do Direito. Houve falhas nas provas da acusação. É isso que o juiz precisa ter. Ele tem que ter dignidade de chegar à conclusão de que não houve prova. E não havendo prova, ele tem que absolver. Porque o principio latino in dubio pro reo [na dúvida, a favor do réu] é milenar, tem dois mil anos. Qual é o conceito que tem nesse principio? É preferível mil vezes absolver um culpado a condenar um inocente. Quanto à reforma, concordo que existe a necessidade de reformar. Tem um grupo de juristas trabalhando. Várias leis esparsas estão sendo agrupadas no Código, que já tem quase 600 artigos. O jurista Reale Júnior [Miguel Reale Júnior – ex-ministro da Justiça do governo FHC] é o que mais tem criticado alguns tópicos da reforma. Gostei de alguns tópicos. Crimes contra a honra será mais severo, porque cá pra nós, calúnia, difamação e injúria acabam com a pessoa. Vejo também que existem propostas, sugestões, que levam a um retrocesso. Por exemplo, estão criminalizando a conduta de quem assiste a uma briga de galos, não é de quem bota os galos para brigar. É o coitadinho que está lá no meio do mato, gosta daquilo e de repente: cadeia.

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