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Lado B

Os prazeres e pesares de ser um morador da histórica Vila Ferroviária

Paula Vitorino | 26/02/2012 10:45
Morador mostra a garagem da casa que não consegue reformar (Foto: Paula Vitorino)
Morador mostra a garagem da casa que não consegue reformar (Foto: Paula Vitorino)

Morar em uma casa do Complexo Ferroviário, com cerca de um século de história e que ajuda a contar a trajetória de desenvolvimento de Campo Grande, pode render muitas alegrias, mas também desprazeres.

Com aproximadamente 170 imóveis, o Complexo é considerado Patrimônio Histórico Nacional e foi tombado pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em 2009.

Além do orgulho em poder dizer que moram dentro da história, os moradores tem outros privilégios, como não pagar o IPTU, mas nem tudo são flores. Viver em um imóvel histórico exige “gosto” pelo antigo e limitações.

“A casa é minha, mas não é. Não posso fazer nada nela que quero, não posso melhorar, colocar estrutura mais moderna, segura, tem que deixar parada no tempo”, desabafa a insatisfação o morador Ari Ribeiro Lopes, de 65 anos.

Com o tombamento, as casas não podem receber qualquer modificação que altere a estrutura do imóvel e as características originais da fachada. Mas qualquer reforma, mesmo que não altere as características, precisa ser autorizada antes pelo IPHAN, sob o risco de ser interditada.

Isso significa que o ferroviário aposentado Ari, que mora no local há 30 anos, não pode fazer a grande reforma na fachada da residência, como gostaria. O projeto era aumentar o muro e o portão para dois metros e colocar sistema eletrônico.

A garagem, construída no início do século passado pelos próprios ferroviários, com restos de trilho e madeira, seria substituída por uma estrutura moderna, mais resistente e mais ampla, com capacidade para abrigar dois carros.

“A garagem tá caindo. Isso aqui foi feito antes de eu mudar para cá”, frisa.

Além da parte estética, a reforma teria a finalidade de aumentar a sensação de segurança, já que o morador afirma que foi assaltado duas vezes nos últimos meses.

“Deixam eu reformar, mas não posso aumentar o muro e tenho que colocar um portão do mesmo formato e de madeira. Eu não posso nem ter segurança na minha casa?”, questiona.

O projeto foi negado por duas vezes pelo IPHAN, que orientou que reformas e melhorias na frente da residência podem ser feitas desde que sigam as características originais do imóvel.

Ari diz que a limitações causam indignação e desgosto com a morada, que também conta a história de sua família.

“Já pensei em mudar, mas isso não é certo. Eu comprei aqui, é minha casa, o lugar onde criei meus filhos, minha família”, justifica.

O superintendente do IPHAN/MS, André Rachid, explica que “não tem como aprovar um portão de 2 metros e uma garagem como está no projeto. Vai contra toda a harmonia visual do Complexo”.

Ele ainda ressalta que o fato do imóvel ser tombado não é desculpa para abandono, pelo contrário, o proprietário tem obrigação de zelar para que o prédio tenha plenas condições de uso.

Uma vida - Preservar o Complexo Ferroviário é zelar por cada detalhe do local, desde as estacas de madeira das casas até os paralelepípedos, que já estão velhos e gastos.

Mas o prazer do saudosismo em morar na Vila recompensa todos os trabalhos extras para alguns moradores, pois a maioria vive algum tipo de relação de amor com o local.

“Não quero mudar nada. Agora só pretendo fazer reformas, mas pra preservar o que já existe”, diz o ferroviário aposentado, Antonio Marques da Silva, de 54 anos, que mora há 13 no local.

A casa dele preserva as janelas, garagem e detalhes originais. Mas o portão foi trocado antes do tombamento histórico por um de ferro, com a estrutura mais fechada. “Achei mais seguro trocar”, diz.

O morador há quase 30 anos da Vila, Nelson Firmino, de 74 anos, ensina que “tem que cuidar da casa para não estragar, não ter rachaduras”.

O prazer em morar na Vila também é devido a presença dos amigos, já que praticamente todos foram colegas de trabalho. “Adoro muito aqui, tenho a amizade dos moradores e é um local centralizado. Inclusive, quem mudou daqui se arrependeu depois”, diz Antônio.

Superintendente do Iphan (Foto: Paula Vitorino)
Superintendente do Iphan (Foto: Paula Vitorino)

Orgulho em ser história - O carinho a história do local fez a moradora Aide Batista Vargas, de 55 anos, comprar uma casa na Rua dos Ferroviários, derrubar o imóvel “que estava caindo na cabeça de velho” e reconstruir tudo no mesmo estilo, utilizando até algumas das madeiras antigas.

“Eu gosto dela assim, de madeira, desse jeitinho. Construí ela de novo porque não tinha condições de morar como era, fiz algumas melhorias no acabamento, mas o projeto é o mesmo”, afirma.

A casa tem a maior parte dos cômodos de madeira, que ganharam pintura e revestimento especial no interior da casa. Um banheiro foi construído, a cozinha ganhou azulejos, mas os detalhes históricos continuam ali.

“Sinto orgulho de morar aqui. Gosto de olhar as casas, de ver a história em tudo”, ressalta.

Seu marido era ferroviário até falecer em 1999. A casa foi comprada em 2001 por conta do desejo de morar no local e após várias parcelas de pagamento.

Ela conta que mudou para o local já sabendo que se tratava de um prédio histórico, que deveria ser tombado, e não poderia ter as características alteradas.

“Aqui foi vendido justamente para pessoas que são de classe baixa. Aqui não é para pessoas que tem dinheiro, é pra quem gosta de viver aqui como é, e quer preservar o imóvel”, ressalta.

Deveres e responsabilidades - O IPHAN recebe cerca de 5 solicitações por semana de reformas em imóveis. Superintendente afirma que todas são avaliadas, mas não pode informar quantas são aprovadas, já que muitas recebem alvará parcial do projeto.

André esclarece que o tombamento é do Complexo, por isso o que mais importa é o visual conjunto do local, para que algum visitante passeando pela área possa visualizar as características da época em que foi construída a ferrovia. Sendo assim, modificações na parte interna dos prédios são permitidas, desde que não alterem a estrutura do imóvel.

As casas da área tombada são isentas do IPTU e o morador também pode deduzir do Imposto de Renda parte do que gastar em reformas na casa. O IPHAN também informou que estão sendo criadas linhas de crédito especificas para os proprietários.

Mas todos os benefícios exigem a contrapartida do morador em manter o imóvel em plenas condições de uso e sem descaracterizar o projeto original. “É obrigação do proprietário cuidar do imóvel, não deixar que ele fique tomado de cupim ou outro tipo de abandono”.

André ressalta que “é preciso entender a riqueza histórica e cultural dessa área para preservar” e que o IPHAN está sempre a disposição dos moradores para oferecer todo tipo de orientação e esclarecimento.

“O grande número de imigrantes, a cultura de povos como os japoneses, italianos e paraguaios em nosso Estado só aconteceu por conta da Noroeste, que trouxe desenvolvimento para toda a região”, explica.

Por meio dos imóveis da área é possível identificar quem morou em cada prédio, de acordo com a hierarquia dos cargos que ocupavam na Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Desde os engenheiros, superintendentes e trabalhadores dos trilhos moraram ali.

História - O primeiro tombamento do Complexo foi a nível Municipal, em 1997, e no seguinte foi considerado Patrimônio Histórico também do Estado.

No entanto, o maior rigor em relação à fiscalização das obras nos prédios do local só aconteceu após o tombamento federal do IPHAN, que instalou uma sede dentro do Complexo.

Muitos imóveis foram totalmente reformados antes e perderam quase todas as características originais. Os prédios reformados antes desse período não podem sofrer penalidades, mas em caso de nova reforma, o proprietário só poderá fazer modificações que retornem as características originais.

A área tombada compreende Complexo Ferroviário, no quadrilátero da Eça de Queiroz, parte direita da Rua dos Ferroviários, parte da 14 de Julho e Avenida Mato Grosso. A área ao redor é chamada de “área de entorno”, criada para diminuir o impacto urbano no local tombado – 13 de maio, rua Alfenas, avenida Afonso Pena e Ernesto Geisel.

Para a área de entorno, a orientação é a mesma: não alterar as características da fachada, mas o proprietário na maioria dos casos não é obrigado a cumprir totalmente a determinação.

Orla Ferroviária tem quase um século de história (Foto: Marlon Ganassin)
Orla Ferroviária tem quase um século de história (Foto: Marlon Ganassin)
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