ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no Twitter Campo Grande News no Instagram
MARÇO, QUINTA  28    CAMPO GRANDE 24º

Capital

Por dentro do lixão: trabalho se divide em seções e lucro também é sazonal

Paula Maciulevicius | 02/01/2012 20:00

Como se dividem e vivem trabalhadores que dependem de organização própria para dar conta da demanda de 2 mil t de lixo

As fileiras formam a baia, uma das seções dentro do lixão. Catadores fazem fila de bags para pegar o que vem direto dos caminhões. (Foto: Pedro Peralta)
As fileiras formam a baia, uma das seções dentro do lixão. Catadores fazem fila de bags para pegar o que vem direto dos caminhões. (Foto: Pedro Peralta)

A estrutura segue o organizacional de uma grande empresa. Se divide em três setores para dar conta de tanta demanda e ainda sofre com altas e baixas de mercado. A corrida contra o tempo para bater a produtividade imposta por eles mesmos vai além de um expediente de 8h e dispensa chefia. Ali é cada um por si.

Eva Fernandes, 43 anos, já passa duas décadas da vida nessa rotina. Madruga e começa no batente 4h da manhã separando materiais para enviar à segunda etapa de seleção e perseguindo a meta de produtividade. Como qualquer outra função exige agilidade. Tudo normal se não fosse o ambiente de trabalho uma gigantesca montanha de lixo.

Quem passa pelo local ou ouve histórias sobre o lixão, pode não imaginar o nível de organização dos catadores. Eles classificam os setores como baia, garimpo e barrancada. E não fazem por menos, em meio a mais de 2 mil toneladas de lixo diárias, eles buscam o que vale dinheiro para garantir o sustento.

“Nós que faz, se não fazer, não cata nada porque é muita gente, aí um consegue e o outro não”, comenta. A camaradagem com os colegas de trabalho também existe no lixão.

Eles também sofrem com baixa de mercado. Recicladoras de recesso refletem em queda no quilo da pet. (Foto: Pedro Peralta)
Eles também sofrem com baixa de mercado. Recicladoras de recesso refletem em queda no quilo da pet. (Foto: Pedro Peralta)

A seção onde Eva trabalha é a baia. E ela explica logo de cara que precisa chegar cedo para pegar lugar, se não, não consegue trabalhar. “É em fileira, tem duas filas, você chega e coloca a bag. O caminhão entra e a gente pega direto o que está sendo despejado”, ensina.

No lixão também é preciso de agilidade. Os catadores têm poucos minutos para recolher recicláveis antes que a patrola passe e jogue o lixo para quem está na barrancada.

“Às vezes eles esperam cinco minutos, se tem outro caminhão. Tem que ser rápido e ficar de olho em tudo, se não atropela a gente”, acrescenta como se os riscos se resumissem a um único acidente.

Em dia de semana Eva chega 4h e fica até o último caminhão no final da manhã. O local de trabalho permanente é a baia. “No barranco eu tenho medo, não dá, desmorona o tempo todo e é ruim”.

Depois que a patrola passa, quem entra em cena são os barranqueiros que ficam na parte mais perigosa do lixão, justamente àquela onde o menino Maikon Correia Andrade, 9 anos, morreu soterrado.

Perigo no ar: catadora tenta se livrar do mal diário, conviver com a fumaça do lixão. (Foto: Pedro Peralta)
Perigo no ar: catadora tenta se livrar do mal diário, conviver com a fumaça do lixão. (Foto: Pedro Peralta)
Área isolada dentro dos limites dos próprios catadores. De ossada animal, restos de carne a lixo hospitalar. Muito lixo hospitalar. (Foto: Simão Nogueira)
Área isolada dentro dos limites dos próprios catadores. De ossada animal, restos de carne a lixo hospitalar. Muito lixo hospitalar. (Foto: Simão Nogueira)

Já o garimpo é para aqueles que não têm lugar fixo e saem catando sem direção.

Há também aqueles que fazem do lixão um “bico”. Dona Abadia Serafim dos Reis, 52 anos, não é exceção. Ela não cata todo dia só quando não tem outra coisa. “Se surge outro serviço eu não venho. Só de vez em quando cato latinha e aproveito material de construção. Levo para terminar de arrumar o meu barraco”.

O trabalho acompanha a economia do mercado de recicláveis, que têm altas e baixas como qualquer outro setor. Contrariando o que se imagina, que no período de festas o trabalho aumenta o que diminuiu foi a demanda. Apenas uma das grandes recicladoras está aberta, de resto, segundo os catadores, seguem em recesso até a próxima semana.

A baixa nas vendas reflete no movimento do lixão. Entre o final e o começo deste ano o número de catadores na ativa caiu. “Hoje está pouco porque o material está em baixa. Se não tem comprador, não tem onde por, daí é melhor deixar aí”, comenta Jair Soares, 41 anos, há 7 no ramo da reciclagem.

Segundo Jair o quilo da pet teve queda significativa, de R$ 0,50 para R$ 0,35. “O lugar mais forte está fechado, só os fracos que estão comprando aí abaixa para todo mundo. O movimento bom só deve começar lá por fevereiro”, afirma.

Desativação do ambiente de trabalho deles - Sobre a desativação e a possibilidade do trabalho com a usina de processamento do lixo os catadores têm opinião formada e não parecem estar abertos a mudar de ideia.

“Ninguém quer ser mandado. Trabalhar em cooperativa por um salário mínimo? A gente que mexe com tudo quanto é lixo, ninguém vai querer. Não estou aqui roubando é o meu trabalho”, fala Eva.

Dia-a-dia - Quem faz do lixão trabalho há 20 anos sabe falar da profissão com propriedade. Num lixo que tem de tudo um pouco, das 2 mil toneladas diárias depositadas ali, mais da metade, 57,2% se restringe a orgânicos, restos de alimentos e frutas.

Fazer o próprio horário não é só o luxo de poder escolher até que horas vai trabalhar. Desse montante os catadores aproveitam 31,6% entre garrafas pet e papelão.

Os riscos são visíveis aos olhos. Se para um adulto aquela montanha de lixo parece ganhar proporção gigantesca, é preciso se colocar no lugar de uma criança. Eles percorrem o caminho de moto, bicicleta ou mesmo com os próprios pés. Nas mãos ganchos de ferro para revirar sacos e os pés, muitas vezes calçados apenas com chinelos, sem proteção nenhuma.

São inúmeras as seringas, agulhas e restos de soro. Tudo à mostra para quem quiser ver. (Foto: Simão Nogueira)
São inúmeras as seringas, agulhas e restos de soro. Tudo à mostra para quem quiser ver. (Foto: Simão Nogueira)

O perigo é vivido de perto. Uma profissão de risco que a qualquer momento pode, como já pôs, tudo abaixo. A queima de gás metano é sentida durante todo o expediente. De perto é possível até ver o chorume borbulhando em meio à toneladas de lixo.

Isso sem contar com o lixo hospitalar responsável por depositar 278 toneladas por mês no lixão. É só perguntar aos catadores onde os resíduos da saúde que carregam em si a doença ficam que eles ensinam.

Na lateral esquerda de quem sobe para o lixão, no meio do caminho o mau cheiro e a presença de urubus já anuncia. Ali tem restos de comida animal. Carnes, ossada e o mais ameaçador, pilhas e pilhas de seringas, agulhas e soros.

Como se bastasse avisar no saco que se trata de lixo hospitalar, as sacolas estão escancaradas, o que indica que foram abertas.

“Mais antigamente que tinha tudo em lixo hospitalar. Cabeça, criança, coisa que ninguém pensava. Vontade eu até tenho de sair, mas tem que ter estudo. Nem ler eu sei. A gente aqui trabalha debaixo de sol, de chuva. Com lanterna a noite. Mas acha coisa boa, eu nunca comprei roupa, sapato, é sempre daqui que eu levo e comida também se não está vencido a gente cata para casa. Ninguém nunca morreu por causa disso, está todo mundo aqui vivo”.

Nos siga no Google Notícias