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Capital

Uso de cocaína explode, e Centro de Apoio é única saída para dependentes

Flávia Lima | 26/07/2015 10:19
Grupo acompanha palestra sobre dependência. (Foto:Marcos Ermínio)
Grupo acompanha palestra sobre dependência. (Foto:Marcos Ermínio)
Gerente do Caps AD, Gabriela Ayres, diz que atendimento multiprofissional busca recuperar auto estima. (Foto:Marcos Ermínio)
Gerente do Caps AD, Gabriela Ayres, diz que atendimento multiprofissional busca recuperar auto estima. (Foto:Marcos Ermínio)

Dados da Secretaria de Segurança Pública de Mato Grosso do Sul apontam que ano passado foram apreendidos, em Campo Grande, 83,2 quilos de cocaína. Em todo o Estado, os números totalizaram,  831 quilos da droga em 2014,.

Já em 2015, os números deram um salto significativo. De acordo com balanço do primeiro semestre, só na Capital, foram apreendidas 1,2 toneladas de cocaína e 2,690 toneladas no interior. O total de apreensões, somando todo tipo de entorpecente, chegou a 150 toneladas. Segundo a assessoria da secretaria de Segurança, grande parte da cocaína apreendida no Estado seria utilizada no consumo interno, ou seja, não estava sendo transportada para outros estados.

Os números crescentes de apreensão de cocaína, são um reflexo da realidade encontrada no Caps AD (Centro de Apoio Psicossocial Álcool e Drogas) de Campo Grande, única unidade de saúde da rede pública destinada ao tratamento de dependentes químicos, onde o paciente, além do atendimento médico, tem a possibilidade de continuar o tratamento sendo acompanhado por uma equipe multiprofissional.

Inaugurado há seis meses, o local recebe, em média, entre dez e 15 novos pacientes que buscam ajuda para se livrar dos vícios relacionados ao consumo de entorpecentes e álcool. Ao todo, cerca de 70 pessoas são pacientes fixos.

Contrário ao observado em outros estados, onde o consumo de crack prevalece, no Caps AD da Capital, de acordo com a psicóloga e gerente Gabriela Silveira Ayres, pelo menos 80% das pessoas assistidas na unidade, viciadas em drogas ilícitas, chegam ao local devido ao vício em pasta-base, uma mistura de alta periculosidade, derivada de um macerado das folhas de coca, cal, solvente, que pode ser querosene ou gasolina e ácido sulfúrico.

Os fatores que levam esse derivado da cocaína a ser o supra sumo dos dependentes, é a rapidez do seu efeito no organismo e os preços atrativos. Em apenas sete segundos, a droga, que também é fumada como o crack, chega ao cérebro e proporciona ao usuário um misto de poder e euforia. No entanto, a passagem dessa excitação também é rápida e o que sobra são a ansiedade, sensação de pânico, além de sintomas como insônia, taquicardia, suor excessivo e a destruição do tecido cerebral.

Para sentir os poucos minutos de prazer, os usuários pagam entre R$ 3,00 e R$ 5,00 a pedra, uma diferença significativa do valor de uma trouxinha de pó de coca, que custa cerca de R$ 20,00. O poder devastador da droga já foi retratado em matéria do Campo Grande News, em 2012, porém, de lá para cá, foram poucos os avanços nas políticas públicas para tratamento do vício na Capital.

O Caps AD representa a única oportunidade para quem não pode arcar com uma clínica de reabilitação particular. Inaugurado em janeiro, a unidade funciona 24 horas e trabalha dentro das diretrizes determinadas pelo Ministério da Saúde, que tem por base o tratamento do paciente em liberdade, buscando sua reinserção social.

Baseado nesse lema, os profissionais do Caps não podem obrigar o usuário a permanecer no local. Quem busca apoio recebe um atendimento multiprofissional diário, formado por enfermeiros, técnicos, psicólogos, psiquiatras e farmacêuticos.

Segundo a psicóloga e gerente do local, Gabriela Ayres, existe um planejamento terapêutico, que busca oferecer um atendimento individualizado, já que cada usuário tem um perfil diferente. “O vício pode ser o mesmo, mas a personalidade não. Cada paciente tem uma preferência quanto as dinâmicas desenvolvidas”, relata.

Ao chegar no Caps, o paciente passa por uma entrevista e avaliação que vai fazer o encaminhamento médico adequado. As atividades desenvolvidas como auxílio ao tratamento variam de jogos, aulas de artesanato, pintura, música, caminhadas até musicalização.

A ideia, conforme explica a psicóloga, é proporcionar melhor qualidade de vida dos pacientes, incentivando a autoestima. “A maioria que chega aqui é porque foi expulso pela família, não tem mais a quem recorrer e nem onde morar”, diz Gabriela.

No entanto, o local não oferece internação, apenas um abrigamento para quem já é paciente, não tem residência e tem dificuldade de se manter longe das drogas. Para essas pessoas, há 12 leitos que podem ser ocupados por, no máximo, 14 dias.

Caso o paciente apresente algum problema clínico grave, é levado para as unidades de saúde 24 horas e, se necessário internação, a solução é tentar uma vaga de internação no Hospital Regional Rosa Pedrossian ou no HU (Hospital Universitário).

Para quem está totalmente sem apoio familiar e foi expulso de casa, existe a Unidade de Acolhimento, na Rua Joaquim Murtinho, que oferece a possibilidade de acolhimento do paciente por seis meses. Lá, todos tem obrigações e o trabalho de manutenção é dividido entre os grupos.

Gabriela Ayres diz que o sistema de garantir a liberdade em permanecer ou não na unidade pode parecer ineficiente, porém, ela ressalta que o dependente que busca por vontade própria o local mostra um maior comprometimento com o tratamento, já que não dispõe mais do apoio de familiares e amigos.

“A droga, especialmente a pasta-base, deixa a pessoa devastada. Ela perde tudo, principalmente a dignidade, por isso também trabalhamos a família, quando possível, para ajudar no tratamento”, ressalta.

No Caps, os familiares que aceitam, também recebem apoio psicológico e orientações sobre como lidar com o usuário. “O apoio da família é fundamental, mas, infelizmente, muitos dependentes que chegam aqui já não tem mais esse vínculo porque não é fácil a convivência”, destaca.

Durante visita a unidade, a reportagem do Campo Grande News pode acompanhar algumas das atividades desenvolvidas, supervisionadas pelos profissionais da unidade. Em uma das salas, cerca de 20 pessoas acompanhava palestra sobre dependência, enquanto em outro espaço, outro grupo participava de atividades recreativas.

Apesar do grande fluxo causar uma certa confusão nos corredores, os pacientes já acostumados com a dinâmica do local respeitavam as orientações e até ajudavam a equipe com os novos assistidos. Porém, é nítido o esforço que os funcionários fazem para garantir o funcionamento da unidade. Ao todo são três psiquiatras e três psicólogos, além de um profissional da área de terapia ocupacional, assistente social, farmacêutica, enfermeira, arteterapeuta e educador físico.

Questionada sobre a demanda, a gerente não nega a dificuldade em atender todos os pacientes, principalmente quando necessitam de vagas de internação, mas ressalta que consegue resolver os problemas devido a união do grupo.

Contudo, um funcionário que preferiu não se identificar, disse que o ideal seria dobrar o número de servidores disponibilizados pela prefeitura. Ele também denunciou a falta de alimentação, além de medicamentos importantes, como Fluoxetina, utilizada no controle da ansiedade e Clonazepan, indicada para os pacientes que sofrem de insônia, outro efeito das drogas. Quanto a falta de remédios, segundo ele, o problema está em toda rede pública de saúde.

A coordenadora de Saúde Mental do município, Ana Carolina Ametilla, concorda que o número de funcionários é insuficiente, porém ressalta que segue as diretrizes do Ministério da Saúde. "Pelas normas nem teríamos obrigação de ter psiquiatras à noite, mas aqui os pacientes tem esse atendimento, inclusive nos finais de semana", afirma. Ana Carolina também revela que já foi feito um pedido para aumentar o quadro de servidores.

Quanto a falta de alimentos, ela rebate e diz que está ocorrendo uma mudança de fornecedor, mas a alimentação dos pacientes não foi afetada. Sobre os medicamentos, ela enfatiza que é um problema da rede como um todo, porém está sendo possível administrar e o problema também deverá ser solucionado em breve.

Apesar da dificuldades, ela faz um balanço positivo dos seis meses de atendimento na unidade e diz que o fato de o paciente ter acolhimento garantido, em casos de emergência, é um grande avanço no tratamento. "Antes do Caps o usuári contava apenas com vagas disponíveis no Hospital Regional e as unidades de saúde da rede. Mas após o atendimento, não havia um acompanhamento", ressalta.

Esperança - Apesar das deficiências, para os pacientes que não tem mais a quem recorrer, o Caps é a possibilidade de resgatar novamente a família. É o caso de R.B.S, 35, que há 60 dias passa por tratamento na unidade. Ele conta que já trabalhou como assistente administrativo no Ibama e vendedor, mas foi ao fundo do poço com a pasta-base.

Dependente há 20 anos, ele disse que antes de usar a droga, fazia uso apenas de álcool e maconha e conseguia conciliar o vício com a vida pessoal e profissional, mas perdeu o controle com a cocaína. Hoje, sem família e longe dos filhos, ele batalha para recuperar a confiança dos pais e da ex-mulher. "Não quero morrer usando drogas. Quero viver com os meus filhos, por isso também procuro ajuda espiritual", ressalta.

Ele conta que já ficou internado várias vezes em clínicas particulares, mas sempre era vencido pela recaída. Só depois de ser expulso de casa, ele reuniu forças para buscar apoio sozinho. Morando temporariamente na Casa de Acolhimento, ele não falta um dia das atividades terapêuticas. "Aqui encontrei a força que precisava", destaca.

Outro paciente, I.R.C, 39, tem uma histórico de uso desde os sete anos, incentivando, segundo ele, pelo padrasto. Ele conta que foi sozinho ao centro pedir apoio e antes de virar paciente do Caps, chegou a ficar um ano "limpo", mas como o grupo terapêutico do qual participava acabou, ele voltou ao vício.

I.R.C diz que o apoio da mãe, que o acompanha no Caps, está sendo fundamental para sua recuperação e vem garantindo seis meses longe da droga. "Aqui tem pessoas nobres, que se preocupam mesmo com a gente", elogia. Ex-funcionário de empresas como a Sadia e Pegoraro, onde trabalhava como operador de máquinas, ele sonha com a retomada da vida profissional. "Hoje consigo falar não,mas como aprendemos aqui, cada dia é uma batalha a ser vencida", afirma.

 

Momento de recreação entre pacientes garante ajuda no tratamento. (Foto:Marcos Ermínio)
Momento de recreação entre pacientes garante ajuda no tratamento. (Foto:Marcos Ermínio)
R.B.S busca ajuda espiritual para seguir o tratamento no Caps. (Foto:Marcos Ermínio)
R.B.S busca ajuda espiritual para seguir o tratamento no Caps. (Foto:Marcos Ermínio)

Ilusão - Para o psiquiatra e membro do Conselho Estadual Anti Drogas, Marcos Estevão Moura, não se pode negligenciar o consumo de maconha e do álcool, mesmo o último sendo uma droga lícita. "Eles são a porta de entrada para as drogas mais pesadas e ainda continuam sendo os campeões de consumo", afirma.

Ele diz que de acordo com dados do Cebrid (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas), quase 2 da população brasileira é dependente de maconha, no entanto, o é impossível mensurar o número de usuários. Sobre o consumo de álcool, ele é mais severo e diz que, apesar da lei que proíbe a venda de bebidas a menores, não há como ter certeza de que uma pessoa maior de idade está comprando álcool apenas para seu consumo.

"Você vai aos shoppings e você vê aquelas torres de chopp e um grupo de jovens ao redor. É um incentivo ao consumo, isso tinha que ser proibido, assim como as propagandas na mídia", destaca. De acordo com o psiquiatra, os efeitos das duas drogas não são devastadores como o da pasta-base, mas prejudicam diretamente o desempenho do usuário, principalmente no trabalho. "A maconha está ligada a falta de produtividade da pessoa em todos os setores e o álcool sempre está ligado a acidentes urbanos e crimes", enfatiza.

Sobre a legalização da maconha, ele é enfático e diz que é preciso rever os movimentos que pedem a liberação da droga. "Estamos indo contra a corrente. O tema é complexo e envolve muitas questões. Muitas pessoas que consomem maconha já pensam em drogas mais poderosas. É como praticar salto ornamental, sempre será preciso subir um degrau", compara.

Quanto as políticas de tratamento disponíveis na rede pública, ele avalia como deficitárias, mas ressalta que a implantação dos Caps que funcionam 24 horas foi um passo importante no auxílio aos dependentes. "A noite é quando a pessoa mais sente falta de uma ajuda", ressalta. No entanto, ele acredita que em casos mais graves, a internação ainda é necessária.

Na sua opinião, o caminho correto para o tratamento seria o usuário passar por uma internação, depois por tratamento em algum grupo terapêutico, durante seis meses a um ano e depois passar para os Caps, onde já teria condições de ir apenas para participar das atividades e orientações.

Para o psiquiatra também seria importante o poder público auxiliar os grupos terapêuticos que lutam sozinhos contra a dependência, muitas vezes sem recursos. "Sãos essas pessoas que efetivamente tiram o usuário das ruas e precisam de apoio", diz. Porém, na sua opinião, tanto estado quanto prefeituras não deveriam se eximir da responsabilidade, já que, segundo ele, a dependência química é considerada uma epidemia.

"Os Caps precisam, efetivamente, ter profissionais 24 horas, que possam socorrer apessoa de madrugada, Além disso, também poderiam ser criadas equipes volantes que prestassem assistência nos bairros, levando também informação. Mas já é um grande passo para quem está na rua, abandonado pela família", conclui.

Unidade funciona 24 horas e atende cerca de 70 pacientes fixos. (Foto:Marcos Ermínio)
Unidade funciona 24 horas e atende cerca de 70 pacientes fixos. (Foto:Marcos Ermínio)
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