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Sobreviventes que tentaram salvar amigos voltam hoje à cena da tragédia

Paula Maciulevicius | 02/02/2012 07:05

Cícero e Djalma: a história de vítimas que se vestiram de coragem e foram heróis no curtume

"Cheguei dado como morto. Não tinha respiração. Fiquei sabendo que um colega me pegou e jogou dentro do carro". (Foto: Marlon Ganassin)
"Cheguei dado como morto. Não tinha respiração. Fiquei sabendo que um colega me pegou e jogou dentro do carro". (Foto: Marlon Ganassin)

Eles foram protagonistas de uma cena de horror. Em meio ao desespero de não saber o que estava acontecendo, funcionários que estavam no curtume tentavam ajudar colegas que já sofriam as consequências do até então, desconhecido.

Gritos, apertos de mãos e amigos carregados no ombro, até que a fumaça cobrisse o lugar e o desmaio fosse inevitável. Horas depois eles acordaram em macas da Santa Casa, cada um com a última cena que lhe vinha a memória. Ao caírem em si a reação de Cícero e Djalma foi uma só, de agradecer por viver outra vez.

Aos 44 anos Cícero Mendes de Andrade vai se lembrar do dia 31 de janeiro de 2012 para o resto da vida. Um dia antes de completar sete meses de trabalho no curtume do Marfrig ele viveu e reviveu. As palavras saem à boca como prova de que ele se recorda de cada segundo ali dentro. O antes, durante e o trágico depois do vazamento de gás tóxico, que matou quatro trabalhadores e pelo que ele acredita ser um milagre, o deixou contar a história de como é renascer.

Seo Cícero estava dentro do curtume quando a tragédia começou, mas distante do setor onde o vazamento ocorreu. Em questão de segundos, entre uma passada de pano no chão e outra ele ouviu os gritos começarem anunciando "fogo".

"Vinha vindo uma fumaça por cima da plataforma. Eles começaram a gritar, nós corremos para fora. Mas eu ouvia o povo gritando socorro e muita gente caída. Voltei correndo, senti que tinha que voltar para ajudar os colegas que estavam morrendo".

O relato é forte e fala por si só. A descrição que Cícero dá é de um ambiente tomado pelo desespero e luta pela sobrevivência. No semblantes dos companheiros, ele conta que visualizou a perda de sinais provocada pela falta de ar e muita gente caída.

Cícero ocupava a posição de auxiliar de serviços gerais, mas naquele momento deixou tudo de lado e seguiu o que achou que deveria fazer. Ele, Djalma e outros tantos trabalhadores se vestiram de coragem e foram heróis até quando a intoxicação permitiu.

"Eu me imaginei como eles porque essa era a minha intenção de voltar. Se eu tivesse máscara, teria voltado e voltado com o Edimar e o Marcos Vinícius". (Foto: Marlon Ganassin)
"Eu me imaginei como eles porque essa era a minha intenção de voltar. Se eu tivesse máscara, teria voltado e voltado com o Edimar e o Marcos Vinícius". (Foto: Marlon Ganassin)

"Fui, peguei um, quando voltei com o outro, na distância que estava lá de fora. Senti atacado, a garganta sufocada. Vou soltar, não aguento mais e não vi mais nada", lamenta. Três horas depois ele acordou na Santa Casa.

"Cheguei dado como morto. Não tinha respiração. Fiquei sabendo que um colega me pegou e jogou dentro do carro".

Hoje, dois dias após o caso e passado o sepultamento de duas vítimas em Mato Grosso do Sul ele ainda se põe no lugar daqueles que se foram.

"Tenho um casal de filhos, de 10 e 16 anos. Eu vivi de novo. Imaginei mesmo que podia ser comigo e não tenho nem palavras para agradecer à Deus pelo resto da minha vida".

Durante toda a conversa, Cícero se manteve firme, mas desabou. Vítima da intoxicação e testemunha da morte de companheiros de trabalho por um gás letal, ele cai no choro. O episódio marcou o começo de um ano e deu a ele uma nova vida. "Vivi outra vez e agora será o que Deus tiver escrito para me dar".

Enquanto a matéria do Campo Grande News vai ao ar, o auxiliar de serviços gerais se prepara para entrar no palco da tragédia, o frigorífico Marfrig. "Eu não tenho medo. E vou voltar. Vai ser difícil chegar e não lembrar que não tem aqueles junto de nós. Mas Deus me livrou e é por isso que eu vou".

A face de Djalma Feitosa Lopes, 40 anos, é de outro herói. Há quatro meses no curtume ele enfrentou o medo e hoje a tristeza de voltar ao trabalho sem o amigo Edimar, morto intoxicado pelo gás.

O que o trabalhador tenta explicar é que ainda não era hora e que se não fosse pelo técnico do frigorígico, teria morrido.

"Eu queria salvar vidas, eu não sabia o que era. Ele gritava vaza, vaza, mas por que eu vou vazar? Gente vaza todo mundo. E nisso todo mundo correndo e inalando, gente caindo. Coisa sem explicação e eu tentava levar o rapaz que estava morrendo", diz.

Depois de conseguir sair da área contaminada ele ligou para a esposa, explicando que estava passando mal que tinha inalado algo e que ali havia um monte de gente caída ao chão. "Mas eu não consegui falar mais, o celular ficou ali e eu sem força para pegar".

Djalma começou a trabalhar no curtume por indicação do amigo Edimar. O mesmo que nesta quarta-feira viu ser enterrado. "Ele era um dos melhores amigos do mundo".

A notícia de que o amigo não sobreviveu chegou 5h depois de Djalma ter sido atendido na Santa Casa. A última cena que viu de Edimar subindo para salvar o colega Marcos Vinícius que também não resistiu e morreu.

"Eu vi que meu amigo não tinha voltado e eu olhava para ver se ele voltava. Ontem voltei ao Marfrig depois para pegar a roupa. Nossos armários eram um do lado do outro. Eu entrei e ouvi todos os celulares tocando, inclusive do Edimar. Foi horrível, ali eram mulheres, mães, família ligando para saber se eles estavam bem, se estavam vivos. Eu saí de lá e os celulares continuavam tocando...".

Ao ver dois colegas morrerem no local e serem enterrados nesta quarta, Djalma ainda se coloca no lugar deles. "Eu me imaginei como eles porque essa era a minha intenção de voltar, de salvar. Só me salvei porque o técnico apareceu. Mas se eu tivesse uma máscara, eu teria voltado e voltado com o Edimar e o Marcos Vinícius".

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