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Cidades

Leitor de clássicos, Maníaco da Cruz fez o ensino médio dentro da Unei

Dyonathan Celestrino teve a sua oportunidade na unidade de Ponta Porã de onde fugiu no dia 3 de março; “ele também alimentava a esperança de melhorar pelo conhecimento”, diz professora.

Carlos Martins | 26/03/2013 07:30
Diretora Eliete Barros da Escola Polo Professora Evanilda Maria Neres Cavassa (Foto: Vanderlei Aparecido)
Diretora Eliete Barros da Escola Polo Professora Evanilda Maria Neres Cavassa (Foto: Vanderlei Aparecido)

Nos últimos quatro anos, Dyonathan Celestrino, hoje com 21 anos, mergulhou no mundo do conhecimento. Apreciador de clássicos da literatura, apto a prestar o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), para quem sabe seguir alguma carreira, ele largou tudo para trás quando, no início de março, decidiu quebrar uma janela e se evadiu de seu quarto na Unei (Unidade Educacional de Internação) de Ponta Porã, para onde foi levado aos 17 anos em outubro de 2008. Dyonathan foi internado porque matou três pessoas em Rio Brilhante e, por deixar suas vítimas em uma posição de crucificação, ficou conhecido nacionalmente como o “Maníaco da Cruz”.

“O Estado, por meio da Secretaria de Educação, implementa todas as ações para que o interno possa ser socializado, incluí-lo, fazer com que ele saia com nova perspectiva de vida. O aluno entra no mundo do conhecimento e isso ajuda a estimular as boas ações. O Dyonathan teve sua oportunidade”, diz Eliete Marques Barros, diretora da Escola Estadual Polo Professora Evanilda Maria Neres Cavassa, que foi criada com a finalidade de garantir a Educação Básica dentro das Unes e no Centro Recomeçando.

A fuga de Dyonathan foi descoberta na manhã do dia 3 de março. A rigor, não era mais para ele estar naquela unidade, porque seu tempo de internação – no máximo três anos-, no qual cumpriria medidas socioeducativas, tinha terminado em outubro de 2011. À época ele não saiu porque a Justiça, baseada em um laudo psiquiátrico, decidiu que ele deveria ser internado em uma unidade psiquiátrica para ser avaliado e como tal instituição não existe, ele acabou ficando.

Segundo a própria Secretaria Estadual de Saúde, apesar dos pedidos, não foi encontrada nenhuma vaga nos serviços do SUS (Sistema Único de Saúde) que atendesse a essa área. A questão, é que no Estado não existe nenhuma estrutura que possa abrigar, com segurança, alguém com o perfil do “Maníaco da Cruz”.

Boletim de Dyonathan de 2009 do Ensino Médio(Foto: Reprodução)
Boletim de Dyonathan de 2009 do Ensino Médio(Foto: Reprodução)
Boletim de Dyonathan de 2010 do Ensino Médio(Foto: Reprodução)
Boletim de Dyonathan de 2010 do Ensino Médio(Foto: Reprodução)

Boletins - Quando chegou à Unei de Ponta Porã, Dyonathan contou que estava no Ensino Médio. A direção da escola fez um teste de avaliação e ele foi aprovado no Encceja (Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos).

Habilitado, ele cursou nos anos de 2009, 2010 e 2011 o Ensino Médio e, conforme seus boletins, obteve notas que variaram entre 6 (Sociologia e Artes) e 8,5 (Biologia), suficientes para ser aprovado no Ensino Médio. Ele fez as mesmas disciplinas que fazem parte da matriz curricular regular: Língua Portuguesa, Literatura, Artes, Educação Física, Química, Biologia, Matemática, Geografia, História, Filosofia, Sociologia, Redação e Língua Estrangeira, que ele optou pelo Inglês.

Dyonathan, segundo os relatos, era um aluno calado, introspectivo, fechado em si mesmo. Em 2009, quando iniciou o primeiro ano do Ensino Médio, chegou a freqüentar a sala de aula juntamente com os colegas. Depois foi se afastando, se retraindo e começou a preferir a ficar em seu alojamento, para onde os professores levavam as tarefas e ele cumpria com as atividades. Foi também assíduo para com seus deveres. Em 2009, não teve nenhuma falta, em 2010 foram 24 faltas e, em 2011, também não teve nenhuma falta. Note-se que o número máximo de faltas permitidas é de 194.

Boletim de Dyonatah de 2011 do Ensino Médio (Foto: Reprodução)
Boletim de Dyonatah de 2011 do Ensino Médio (Foto: Reprodução)
Diretora-adjunta da Escola Polo, Mary Estela Miranda Pita (Foto: Vanderlei Aparecido)
Diretora-adjunta da Escola Polo, Mary Estela Miranda Pita (Foto: Vanderlei Aparecido)

Clássicos da Literatura -Em seu alojamento, onde cumpria com suas tarefas, Dyonathan passou a se dedicar ao prazer da leitura. Ele mostrou especial predileção por obras de destaque na literatura. “Ele leu quase todos os clássicos e fez trabalhos maravilhosos”, diz a diretora.

Entre os livros lidos por Dyonathan estão “Escrava Isaura” (Bernardo Guimarães), “O Ateneu” (Raul Pompeia), “ Memórias de um Sargento de Milícias” (Manuel Antônio de Almeida) e “Romeu e Julieta” (obra de William Shakespeare). “Ele ficava quieto em seu canto. Tinha dia que não se comunicava, ficava calado, não se sentia bem, daí ia para o alojamento e o professor levava a tarefa. Ele queria aprender e lia os livros”, diz Eliete.

A diretora diz que cada interno é tratado como um aluno, independentemente do motivo que levou à internação. Motivos que podem incluir uso de droga, agressões, furtos, roubos, confusões nas quais o adolescente se envolveu causadas muitas vezes pelo desajuste familiar. E até homicídios, como foi o caso de Dyonathan. Enfim, cada aluno possui um perfil diferente que o leva a ficar na unidade por pouco tempo, por causa de uma simples infração, ou até por três anos período máximo estipulado pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).

“Quando estamos com um aluno procuramos tratá-lo como um aluno, porque não somos médicos para avaliá-lo e sim professores. Nossa missão é aplicar a metodologia para a qual a escola está preparada, capacitada. E esperamos que o aluno se desenvolva de acordo com a metodologia. O professor, embora esteja alerta, não sente medo, porque está capacitado, tem um perfil diferenciado”, analisa a diretora.

Dyonathan Celestrino completou 21 anos no dia 5 de janeiro deste ano
Dyonathan Celestrino completou 21 anos no dia 5 de janeiro deste ano

Extensão - Criada em 2004, a Escola Estadual Polo Professora Evanilda Maria Neres Cavassa está dentro de cada uma das 10 Uneis espalhadas pelo Estado e cada unidade conta com um Coordenador Pedagógico. Além de atender às Uneis, a Escola Polo possui uma extensão voltada para o ensino da EJA (Educação para Jovens e Adultos ) para o Ensino Médio noturno e que beneficia a comunidade que vive na região do Jardim Colibri II, em Campo Grande.

A extensão, criada a pedido do falecido Danilo Burin (juiz da Infância e Juventude), funciona na Escola Municipal Leire Pimentel de Carvalho Corrêa e atende em torno de 200 alunos. No total, a Escola Polo tem 57 professores, dos quais 40 estão dentro das Uneis e 17 na Extensão que funciona no Jardim Colibri II.

A escola foi criada para preencher uma lacuna que existia nas unidades em relação ao ensino regular. Antes, professores de Matemática e Português, por exemplo, ministravam aulas para os internos, mas o ensino não era normatizado, sistematizado, tampouco havia um projeto pedagógico. Como qualquer outra, o ano letivo da Escola Polo tem 200 dias e matriz curricular aprovada pela Secretaria Estadual de Educação. No início de cada ano acontece à jornada pedagógica, quando professores se reúnem em Campo Grande, são capacitados, e é feito um planejamento.

Além do ensino regular (Ensino Fundamental e Ensino Médio) que pode ser pela manhã ou à tarde, os alunos participam de vários projetos aplicados no período em que não estão em sala de aula. Projetos como o de leitura na Biblioteca, projeto de Artes de Pintura em Gesso ou o de Música, que está em andamento na Unei Dom Bosco, na Capital. Este ano, o instrumento que eles escolheram é o violino. Já em Dourados, nas Uneis Laranja Doce (masculino) e Esperança (feminino) meninos e meninos escolheram o violão. Os alunos aprendem, também, em todas as unidades, o jogo de Xadrez. Os alunos, dentro de vários projetos, produzem os mais variados objetos, que são vendidos em exposições em dias comemorativos, como o das Mães e dos Pais.

Conforme determinação do Sinase (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), quando o adolescente chega à Unei, ele e familiares se reúnem com uma equipe técnica da unidade e juntos definem como o adolescente cumprirá as medidas socioeducativas. O que for definido vai para o Plano Individual de Atendimento, o PIA, onde são acordados os compromissos. ”Para que os objetivos de aprendizagem sejam atingidos, periodicamente eles se reúnem para avaliar o andamento do que foi pactuado. É feito um relatório que é enviado para o juiz”, explica a professora Eliete.

O aluno também é avaliado diariamente por meio de atividades. Isso porque, de acordo com o planejamento, com o que foi pactuado e em conformidade com a medida aplicada pelo juiz, hoje ele pode estar na escola e amanhã não. Se o aluno chegar à metade do ano, por exemplo, é verificado se ele está estudando em alguma escola. Se estiver, é feita a transferência e ele dá continuidade aos estudos dentro da Unei. Caso ele esteja parado há algum tempo, é feita uma prova de competência, de avaliação, e com nota 7, ele já pode fazer a matrícula e dar seguimento aos estudos. “Organizamos a vida escolar. Às vezes faz algum tempo que ele não estuda, daí fizemos uma prova de competência. Não há nenhum obstáculo para que ele não dê sequência aos estudos”, explica a diretora-adjunta Mary Estela Miranda Pita.

O livro "Conta que eu Conto", em sua 2ª edição, reúne histórias reais dos internos escolhidas pelos professoers e próprios alunos(Foto: Vanderlei Aparecido)
O livro "Conta que eu Conto", em sua 2ª edição, reúne histórias reais dos internos escolhidas pelos professoers e próprios alunos(Foto: Vanderlei Aparecido)
Relato de aluno de Dourados internado por causa das drogas: quando sair quer pedir perdão aos pais e formar sua família (Foto: Vanderlei Aparecido)
Relato de aluno de Dourados internado por causa das drogas: quando sair quer pedir perdão aos pais e formar sua família (Foto: Vanderlei Aparecido)

“Conta que eu Conto” - Histórias vividas dentro das Uneis, retratadas em dois livros cujos autores são os próprios internos, mostram que é possível dar a volta por cima. Incentivados pelo universo da literatura, os alunos das Uneis expressam suas angústias, arrependimentos, esperança, o desejo de dar a volta por cima, por meio das palavras. O incentivo veio por meio do projeto “Tecendo Leitura”, criado em 2010 com o objetivo de desenvolver as habilidades e competências dos alunos em ler, interpretar e produzir diferentes gêneros textuais.

Planejado pelos Coordenadores Pedagógicos, professores e alunos, o resultado do projeto pode ser observado em duas edições dos livros “Conta que eu Conto”, editado pela Secretaria Estadual de Educação, e que trazem relatos dos alunos das unidades, muitos deles ilustrados pelos próprios autores. “Os livros contêm as experiências de vida. De tudo aquilo que eles escreveram em sala de aula, as melhores histórias são escolhidas pelos próprios alunos e professores e publicadas no livro. A capa, inclusive, é feita por eles”, explica Eliete.

Nos textos, os jovens retratam seus problemas familiares: o pai que abandonou a mãe quando ele era pequeno, e já adolescente, acabou envolvido por más companhias; meninas, que para não serem estupradas pelo padrasto fogem de casa, ficam grávida do “namorado”, e para sobreviver, acabam se prostituindo e se envolvendo com o tráfico de drogas; jovens que se meteram em confusão e que por fatalidade acabaram tirando a vida de outro.

Resultados - O resultado do aprendizado pode ser conferido no desempenho dos alunos em algumas competições das quais participam, como nas Olimpíadas de Matemática, cujos resultados conquistados até agora são animadores. Os esforços também já resultaram em prêmios. O projeto ABC da Energia (parceria do Governo do Estado e Enersul), por exemplo, premiou um trabalho de Energia Eólica desenvolvido pelo professor e alunos dentro da sala de aula. Outro prêmio conquistado foi um oferecido pela Agetran (Agência Municipal de Transporte e Trânsito), em função de projetos de trânsito desenvolvido pelos alunos dentro das salas de aula.

Superintendente de Assistência Socioeducativa, Heitor Villasanti Romero: o ensino dentro das Uneis é que faz a diferença (Foto: Vanderlei Aparecido)
Superintendente de Assistência Socioeducativa, Heitor Villasanti Romero: o ensino dentro das Uneis é que faz a diferença (Foto: Vanderlei Aparecido)

Entusiasta - O Superintendente de Assistência Socioeducativa, coronel Hilton Villasanti Romero, é um entusiasta do trabalho desenvolvido pela Escola Polo dentro das unidades. “A escola é espetacular, representa um papel fundamental na ressocialização”, diz ele, que é o responsável pelas Uneis. Para ele, a socioeducação se sustenta em dois pilares: a educação formal (Escola Polo) e a profissionalizante (cursos ministrados pelo Senac). “Sem isto não existe razão para o jovem estar na Unei. É o que faz a diferença”, avalia.

Para a diretora da Escola, Eliete, com a Superintendência de Assistência Socioeducativa houve um reconhecimento dos trabalhos realizados dentro das Uneis. ”A normatização das ações socioeducativas contribuiu para que a escolarização pudesse se efetivar ali dentro. A determinação da Secretaria de Educação é que seja realizado um projeto para que os alunos possam ser incluídos na sociedade”. Nesse sentido, de Corumbá, veio um exemplo recente. Um aluno egresso da Unei, decidiu seguir o caminho das Leis, e hoje faz estágio no Fórum do município.

O desempenho de meninos e meninas tem despertado o interesse dos pais, que passaram a acompanhar com freqüência o desenvolvimento escolar dos filhos. A diretora conta que recentemente uma mãe procurou a escola e disse que nunca viu uma instituição como àquela, que demonstra interesse genuíno pelos alunos. Para Eliete, isso acontece porque o perfil do professor é diferenciado.

Ele tem que ser dinâmico, deve ter várias estratégias de ensino, para que o aluno acompanhe as aulas, participe. “A realização é quando acontece a formatura dos alunos que concluíram os cursos. Fizemos questão de colocar a beca e entregar o canudinho”, brinca a diretora.

“Procuramos cumprir nossa missão com muito zelo e com uma diferença. Sabemos que o aluno que está lá. E é a ele que temos que oferecer o nosso melhor, de acordo com a proposta pedagógica. Nós trabalhamos dessa forma e acho que a autoestima vem a partir do conhecimento. Quando você tem o conhecimento, você diz: eu posso e então eu consigo. Pensamos que enquanto ele estiver dentro da Unei tenha despertado o gosto pelo estudo, pelo conhecimento. Pensamos em fazer ele sentir como é bom aprender, para que ele, lá fora, continue querendo estudar, evoluindo. Até o Dyonathan, mesmo com aquele perfil, também alimentava a esperança de melhorar a partir do conhecimento”, finaliza.

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