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Arquitetura

Casa de madeira mantém as lembranças de 92 anos de dona Nazira na 14 de Julho

Thailla Torres | 25/11/2016 08:47
Aos 90 anos, Dona Nazira é a matriarca da casa só de mulheres. (Foto: Alcides Neto)
Aos 90 anos, Dona Nazira é a matriarca da casa só de mulheres. (Foto: Alcides Neto)

O portão sempre fechado é curiosidade para quem passa em frente à casa de madeira na Rua 14 de Julho, lugar ainda com aparência de fazenda. O endereço destoa no bairro antigo, que já foi transformado. Lá dentro, vive dona Nazira, na beleza de seus 90 anos, com uma saúde e disposição invejáveis. O título de moradora mais antiga é dado por ela, que vive com as recordações da família pioneira na cidade e que ajudou na transformação do bairro São Francisco.

A fachada não tem nada além da varanda vazia e dos portões acorrentados, que também servem de apoio para as plaquinhas escritas à mão: "Vendo geladinho R$ 1,00" e "Corta-se cabelo. 14,99". Com olhar desconfiado, andando em direção ao portão, ela diz que o serviço é só com hora marcada. Sem tempo de explicar sobre a entrevista, é ela quem questiona a visita logo cedo, já buscando uma saída: "Mas a gente tem uma vida comum, aqui não tem nada pra falar", diz.

Foi preciso puxar assunto, falar um pouco da vida, do verde das árvores e do movimento da rua, até surgir a confiança em dona Nazira. Só após 30 minutos de um papo tranquilo sobre as coisas, é que ela faz um convite para a visita.

Nem no jeito de falar, dona Nazira parece ter 92 anos. (Foto: Alcides Neto)
Nem no jeito de falar, dona Nazira parece ter 92 anos. (Foto: Alcides Neto)

Entrando pelos fundos, ela serviu um café e topou falar um pouco da história. Mãe de uma filha, avó de duas e com uma bisneta, Nazira Eshata Merjan é matriarca da casa onde as mulheres reinam há muito tempo. Dos sete irmãos, só Nazira continua viva e com muita saúde para falar dos seus dias. 

Apesar do terreno antigo, a casinha de madeira onde vive tem só 25 anos. Ali ela mora com a única filha e uma das netas. Diz que cuida das plantas e lembra do tempo em que tudo a sua volta era diferente. O lugar onde mora fazia parte da chácara que pertencia aos pais, mas acabou dividida entre alguns herdeiros.

Hoje, vive em um terreno de 1400m², com a casinha de madeira.  "É uma casa forte, com madeira bem tratada e foi feita por um pessoal do Rio Grande do Sul. Não tem cupim e nem fungos", detalha, mostando a estrutura. 

Nazira conta que nasceu em Campo Grande em 1924. As lembranças vêm de seus pais que chegaram primeiro, vindos da Turquia, tentar uma vida diferente no Brasil.

Sem muita coisa na fachada, é plaquinha feita a mão que desperta curiosidade. (Foto: Alcides Neto)
Sem muita coisa na fachada, é plaquinha feita a mão que desperta curiosidade. (Foto: Alcides Neto)

A família Merjan logo se instalou na região e deu nome à propriedade de São Jorge. O lugar por muito tempo foi espaço para a produção de café, cana de açúcar e árvores frutíferas na região. Ela conta que foi o pai, Jorge Chiad Merjan, e a mãe, Milu Chiad Merjan, os responsáveis pelo crescimento. "Aqui não tinha nada, nem casa. A rua tinha espaço para as boiadas todo dia", lembra.

Da infância, recorda os tempos de trabalho do pai que era um comerciante nato. "Ele fazia de tudo, plantava, colhia, cuidava de gado, produzia pinga de alambique. Lembro que veio eu e papai de trem, trazendo de campinas algumas vacas leiteiras. Eu tinha uns 13 anos, vim deitada no meio das vacas", sorri.

Pioneiros na região, foi ali que seu Jorge e Milu criaram todos os filhos. De sete irmãos, só Nazira está viva para lembrar da história. "Todo mundo já se foi", lamenta.

Nazira conta que casou na década de 1940 e foi morar com o marido em São Paulo, durante 40 anos. Ele trabalhava como operário e ela se tornou especialista em urdideira, máquina que preparava o fio para confeccionar os tecidos. A volta para Campo Grande, foi para cuidar do marido que acabou falecendo alguns anos depois, por conta de um câncer.

Filha de Nazira, mantém a profissão de cabeleireira nos fundos da casa. (Foto: Alcides Neto)
Filha de Nazira, mantém a profissão de cabeleireira nos fundos da casa. (Foto: Alcides Neto)

Vivendo ao lado da filha Dinalva Alves Rodrigues, de 66 anos, Nazira procura ter uma vida tranquila. A plaquinha que anuncia o corte de cabelo é a propaganda para o talento da filha que é cabeleireira há 40 anos. Edinalva também é viúva, morou, trabalhou e viveu boa parte da vida em São Paulo. A decisão de mudar para Campo Grande foi para viver ao lado da mãe. "Eu jamais deixaria ela sozinha", afirma. 

Juntas, cuidam da casa e passam os dias admirando as plantas, o que é um privilégio numa região que já está tomada pelos prédios. Nos fundos da casa, Dinalva mantém o salão com a simplicidade desde quando chegou de São Paulo. A cadeira antiga, com alguns rasgos por conta do tempo, é objeto que ela trata como relíquia. "Tem mais de 40 anos, quando eu vim embora, trouxe comigo. Veio ela e esse espelho. Sou uma pessoa muito conservadora, eu não me desfaço das coisas", mostra. 

O lugar não tem nada de sofisticado, mas o que vale é o trabalho bem feito, garante. Durante algum tempo, nos anos 2000, Dinalva lembra que chegou a cobrar R$ 1,99 no corte de cabelo. "Com o tempo eu fui mudando o preço, conforme os salários. Mas sempre mantendo um preço tabelado e em conta", explica como forma de ganhar os clientes.

A venda de gelinhos fica por conta da dona Nazira. Um jeito, segundo ela, de aproveitar o tempo que tem de sobra. "É um jeito para se distrair né", diz.

Retrato da família em meados de 1940. (Foto: Alcides Neto)
Retrato da família em meados de 1940. (Foto: Alcides Neto)

Em um dos cômodos, Nazira e as netas buscam o álbum de fotografias antigo, que revela um dos retratos mais lindos da família. "Esses são os meus pais, eu e os meus irmãos", mostra. A foto, intacta, exibe pessoas elegantes. "Meu pai e minha mãe eram muito corretos. Foram muito trabalhadores. Lembro como se fosse hoje, meu pai carregando leite, rapadura e pinga pra todo lado. Não tinha tempo ruim, era muito trabalho", lembra. 

Do que mais sente saudade? Nazira até respira fundo na hora de responder. "De tudo minha filha, de tudo. Não tem uma coisa pra falar, é de tudo. Meus pais, isso daqui tomado de chacaras, todo o espaço que já foi dele e a vida que a gente tinha", comenta.

Ao lado da filha e das netas, ela diz que a casa foi o melhor que pode ficar para a família. "É o nosso canto e isso daqui me lembra muito os meus pais. Hoje eu não saio mais daqui de jeito nenhum". 

Sobre a idade e a disposição inspiradora aos 90 anos, ela garante ter a receita. "Eu não exagero, nunca exagerei. Me alimento direito e durmo bem. Hoje em dia o povo sai por aí, não dorme e come qualquer coisa, não tem saúde que aguente", ensina.

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Por fora, casa está desbotada, mas não perdeu o charme na região. (Foto: Alcides Neto)
Por fora, casa está desbotada, mas não perdeu o charme na região. (Foto: Alcides Neto)
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