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Artes

Artista reproduz e reconstrói fotos em desenhos que ativam a memória

Elverson Cardozo | 16/04/2013 07:50
Marco recebeu 7 obras do artista. (Foto: Vanderlei Aparecido)
Marco recebeu 7 obras do artista. (Foto: Vanderlei Aparecido)

“O tempo dos homens e o tempo de Deus, Chronos e Kairos. O primeiro, imutável, indiferente, decidido e avante; o segundo permeável, vacilante, volúvel e traiçoeiro. No trânsito entre ambos, um avança sobre o outro, nos deixando ao revés da balança que pesa nosso estado em relação às circunstâncias”.

O texto reproduzido acima é apenas parte do primeiro parágrafo do catálogo explicativo de “O Relógio Quebrado”, mostra de sete desenhos pintados a lápis que integram a primeira temporada de exposição deste ano no Marco (Museu de Arte Contemporânea) em Campo Grande.

Você, leitor, consegue imaginar do que se trata? Faz idéia do que o artista quis dizer com isso? O texto não está completo, é verdade, mas continua nesse ritmo, com descrições rebuscadas, “teorias” e considerações que passam longe de uma explicação simples e objetiva.

Mesmo assim, o autor, Henrique de França, de 30 anos, acredita que se o visitante tiver acesso ao folder, como têm, conseguirá entender o trabalho exposto no museu.

Henrique mora em São Paulo e foi o único que não veio à cidade, nem para abertura da temporada no Marco. Apenas enviou os quadros selecionados à Capital. Por telefone, ele falou com o Lado B e explicou o conceito artístico do trabalho.

Henrique de França reproduz fotografias, mas tira os cenários e recria outro ambiente nos desenhos.  (Foto: Vanderlei Aparecido)
Henrique de França reproduz fotografias, mas tira os cenários e recria outro ambiente nos desenhos. (Foto: Vanderlei Aparecido)

Diferente da explanação escrita destinada ao público, França recorreu às palavras mais simples para entrevista. “O Relógio Quebrado” faz parte da série “Meus Sonhos”, iniciada em 2011, e reúne 3 desenhos de 1 x 75 metro e quatro de 35 x 50 cm. Todos foram feitos com a técnica do “lápis sobre papel”.

Trata-se de reproduções de fotografias antigas, a maioria de álbuns de famílias. Henrique fez uma reprodução parcial do registro. Desenhou o “personagem”, mas eliminou todo o fundo. No papel, o artista cria um novo cenário para ambientar a obra. Em geral, a cena lembra locais distantes e abandonados.

A proposta é “reapresentar trabalhos que remetem à posição do homem em seu terno”. É ele mesmo quem simplifica: “É para que o observador se sinta em um sonho. No sonho você geralmente está sozinho, em um lugar que não tem ninguém e você tem a chance de refletir sobre sua situação em relação à vida como um todo”.

Um dos quadros, por exemplo, surgiu da reprodução do desenho de uma fotografia em preto e branco datada da década de 50. A foto original, contou, mostra um homem sentado sobre a raiz de uma árvore grande, plantada em uma rua com algumas casas de madeira. O rapaz, um anônimo, está tocando violão.

Fotografia de um homem tocando violão na década de 50 foi recriada e recebeu adaptações. (Foto: Vanderlei Aparecido)
Fotografia de um homem tocando violão na década de 50 foi recriada e recebeu adaptações. (Foto: Vanderlei Aparecido)

Na hora de desenhar, Henrique retirou a árvore, a rua e ao invés de um conjunto de casas deixou apenas uma, de alvenaria. O personagem continua tocando violão, na mesma posição, mas sentado em cima de caixas de madeira. Algumas árvores escuras, ao fundo, completam a obra.

“Essas árvores no fundo são pretas, não detalhadas. Eu quis dar a sensação do fim do dia, da hora da melancolia em que o sol está se ponto. É um momento bem introspectivo e solitário”, explicou.

Evandro mescla gerações em suas obras. Nos registros há crianças, adultos e idosos. “Quero que o observador sinta-se em contato com as próprias memórias, a própria existência de sua história”, afirmou, se referindo à passagem do tempo.

O tempo, aliás, parece ter inspirado o nome do trabalho. “O título dessa exposição remete à memória”, disse. “Nas nossas horas mais frágeis, o tempo da nossa memória impera, independente da realidade ou de nós mesmos, e dá as cartas, dá o tom, dá os passos”, escreveu, no último parágrafo de seu texto de apresentação.

A arte contemporânea é aberta a interpretações.

Texto do autor. (Foto: Vanderlei Aparecido)
Texto do autor. (Foto: Vanderlei Aparecido)

“O tempo dos homens e o tempo de Deus, Chronos e Kairos. O primeiro, imutável, indiferente, decidido e avante; o segundo permeável, vacilante, volúvel e traiçoeiro. No trânsito entre ambos, um avança sobre o outro, nos deixando ao revés da balança que pesa nosso estado em relação às circunstâncias.

Há momentos em que o salto é abismal e sentimos tal incompatibilidade de forma mordaz, como se estivéssemos sob o controle de fantasmas ingovernáveis direcionando os ponteiros de nosso relógio de modo frívolo e irresponsável, ou com uma insistência objetiva e cruel em mantê-los em determinadas horas do nosso calendário.

É quando percebemos as intempéries do nosso tempo particular, alheio ao decorrer do mundo e suscetível ao comando dos nossos torpores íntimos. Como um relógio quebrado, que ainda teima em funcionar, ficamos à mercê de um contratempo rodopiante e descabido que paira sobre a realidade, como um tapete mágico que ignora a lógica e nos apresenta, à distância o mundo segundo a percepção de nossa memória.

Os desenhos aqui apresentados discorrem sobre esse estado letárgico, que nos desprevine e nos coloca no ponto central (ou tangencial) da superfície humana. É assim como uma página não escrita por descuido ou negação em uma passagem há muito passada para trás, eles apresentam incompletudes somáticas que constituem o vazio materializado e um branco massivo e sufocante, ou em um rajada de tentativas nulas de reedição de uma tomada gasta, acumulando manchas como buracos negros em um filme cujos atores não podem mais reinterpretar os papéis.

As cenas muitas vezes são dadas no limiar entre o dia e a noite, quando sombras de postes de luz e árvores esticam-se e deitam numa última tentativa de se prender à luz, a mesma luz que encara os personagens, os cega e os desnuda perante a própria melancolia associada à esta hora do dia.

Como um diafragma aberto por tempo excedente, o foco é exposto a uma intensa claridade, quase fazendo desaparecer as figuras, dissolvendo-as no leite do papel. Cortes, interrupções, pausas e existência, cabendo a nós fazer o apanhado de resquícios espalhados, peça a peça, ou simplesmente abandoná-los na recusa de remontar um fantasma monstruoso.

Jovens atravessam rituais de passagem cristãos, homens perecem sob o sol, casas se desfazem, crianças se vêem longe do lar, fugas são arquitetadas... Como num jogo de xadrez, os personagens se entrelaçam, se cruzam e se desdobram numa orquestra conduzida ao som de um metrônomo ora baixo, ora ensurdecedor, ora correto, ora desregulado, costurando uma trama cheia de nós, remendos e buracos.

Nas nossas horas mais frágeis, o tempo da nossa memória impera, independente da realidade ou de nós mesmos, e dá as cartas, dá o tom, dá os passos”, escreveu, no último parágrafo de seu texto de apresentação”.

O artista

Temporada de arte – A exposição “O Relógio Quebrado” é uma das quatro que integram a primeira temporada 2013 do Marco em Campo Grande. O espaço fica aberto para visitação gratuita até o dia 2 de junho, de segunda a sexta, das 12h às 18h.

No local há outros trabalhos: “Trajetos Urbanos”, de Esther Casanova, “Museu de História Ficcional”, de Yara Dewachter, e “Dominus Tecum", do campo-grandensse Evandro Prado.

Serviço – O Marco fica na rua Antônio Maria Coelho, 6000, no Parque das Nações Indígenas. Outras informações podem ser obtidas pelo telefone (67) 3326-7449.

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