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Comportamento

As aventuras de quem, por travessura ou por medo, um dia fugiu de casa

Paula Maciulevicius | 16/09/2014 06:45
Raquel Fernanda fugiu do pai aos 12 anos e encontrou esconderijo na casa de uma tia. (Foto: Marcelo Victor)
Raquel Fernanda fugiu do pai aos 12 anos e encontrou esconderijo na casa de uma tia. (Foto: Marcelo Victor)

Escureceu no parque e a menina ainda brincava. A regra em casa era clara: antes de anoitecer, Raquel Fernanda precisava voltar. Aquele dia por distração ou por achar que o sol também estava na brincadeira, ela se prolongou e, ao se dar conta, na cabeça de juvenil, era tarde demais. Como iria apanhar de qualquer jeito, achou por bem fugir de casa.

Aos 12 anos, ela dormiu na casa do namorado de uma amiga de quem ganhou um passe de ônibus para no outro dia seguir com o plano e chegar até a casa da tia. Da região do Parque Ayrton Senna, no bairro Aero Rancho, a adolescente seguiu sozinha para o Conjunto União. A história tem duas décadas, entrou no ranking das peculiaridades da família e hoje é motivo de risos. Da lembrança de quando fugiu de casa, Raquel guardou o arroz de forno da casa da tia e as roupas emprestadas pelas primas. Foram três dias escondida.

"Eu sempre passava uns três, quatro dias na casa da minha tia. Aquele dia eu fui brincar e esqueci. Nossa, meu pai foi até no IML, eles não conversavam na época", conta. A tia era como se fosse a segunda mãe de Raquel. E lá pelas tantas d,a aventura de não ter apanhado e ainda ganhar os mimos da casa, quase no terceiro dia, a tia perguntou se os pais dela sabiam onde a menina estava.

A menina perdeu a hora de voltar e para não apanhar preferiu fugir. (Foto: Marcelo Victor)
A menina perdeu a hora de voltar e para não apanhar preferiu fugir. (Foto: Marcelo Victor)

"Eu disse que não, se meu pai souber, vai me bater. Ela ligou depois para contar. Eles andavam com a minha foto na carteira perguntando se alguém tinha me visto. E não adiantou nada fugir, porque eu apanhei ainda mais, achei que ele ia me matar", recorda rindo.

A história é recontada sem mágoas, afinal, a menina bem sabia que estava agindo contra as ordens de casa. A coisa boa é que o pai de Raquel e a tia voltaram a se falar depois do episódio. Hoje, Raquel Fernanda Cardoso Mattje, tem 32 anos, é empresária e mãe. A filha também está na adolescência. Aos 12 anos, ela revive na mãe um sentimento diferente de duas décadas atrás. Agora é o desespero que Raquel sentiria se a filha fugisse de casa.

"Minha filha não vai na esquina sem mim. Nossa, eu acho até que meu pai me bateu pouco, eu matava se ela fizesse isso. Coisa que eu só entendi depois que fui mãe. E meu pai, ele também tem uma história, acho que é meio de família", entrega.

E não é que o seu Sebastião Mattje também fugiu para não apanhar? Mas antes de contar as lembranças da fuga, ele faz questão de frisar que não era um pai carrasco, mas que foi criado no século passado e que repassou aos filhos as condições de educação da época, que hoje são bem diferentes. A fuga de seu Sebastião foi aos 7 anos. Também não foi premeditada, mas a força da situação o fez optar por percorrer o caminho do trilho até chegar em Aquidauana.

A fuga parece estar no sangue. O pai, seu Sebastião, também fugiu quando menino. (Foto: Marcelo Victor)
A fuga parece estar no sangue. O pai, seu Sebastião, também fugiu quando menino. (Foto: Marcelo Victor)

Ele morava na avenida Júlio de Castilhos, próximo à Tamandaré numa época em que não havia asfalto e o trilho do trem passava por ali. Pela terra, o menino seguiu até o açougue, a pedido da mãe, para comprar 1 quilo de carne. "Não se usava isso de empacotar carne, era só um gancho de ferro e a gente levava pendurada. Eu estava voltando e rodando o gancho na mão e numa delas, a carne caiu, sujou, encheu de areia", relata. Nos dias de hoje seria fácil, ele voltaria para a casa, a carne seria lavada e depois cozida. Mas o pensamento de criança não foi este.

"Eu era muito criativo, então enterrei para ninguém ver que eu tinha derrubado, voltei ao açougue e pedi mais 1 quilo de carne só que daquela vez na conta. O cara estranhou, mas serviu e eu fui rodando e derrubei de novo". Na segunda vez ele não tinha escapatória mesmo. "Já tinha cometido uma, agora outra? Eu pensei vou morrer de apanhar hoje. Saí e fui embora. Como eu sabia que o trilho do trem ia para Aquidauana pénsei: vou seguir e sair em Aquidauana".

A região só tinha mato e alto que quase fechava todo o verde. Quando a mãe deu pela falta do garoto, foi até o açougue, ouviu o relato e de imediato começou a busca. "Todo o pessoal da antiga Cabeça de Boi foi a minha procura e eu já tinha andando muito, estava na saída da cidade quando foram me encontrar. Daquela vez eu não apanhei, minha mãe ficou com muito medo".

Hoje ficou a lembrança e a saudade. "Eu sinto uma saudade, barbaridade da minha mãe e acho graça das coisas que eu fiz", resume. Com a filha Raquel, décadas depois, a situação era outra. "A Raquel não era nenhuma santinha não. Era bem alterada, gostava de fazer coisas que fugiam à regra", pontua.

Na determinada ocasião da fuga, ele afirma que a sabia da rigidez e do castigo que enfrentaria em casa. "Ela tinha a minha irmã que era um dengo com eles. Eu também usei desse artifício quando era menino, ela sabia que se corresse para a minha irmã, estaria livre. Mas você não imagina o desespero que a Vera, minha esposa, e eu passamos", descreve.

Na narrativa do pai, a menina fugida deu um aperto no coração que ganhava proporção maior ao ver o número de crianças desaparecidas no Brasil. "Ela era linda, coisa mais linda que eu tinha, minha caçula, imagina o meu pavor de pensar que não ia ver mais? Só que ela correu para a casa da minha irmã e era assim, cometido o erro, tem que pagar e foi executado de acordo".

Quando soube onde Raquel estava, além do corretivo imediato, a menina ganhou castigo por tempo indeterminado, até que a memória de seu Sebastião guardasse a lembrança de uma história engraçada, de quando a filha fugiu de casa.

As fugas viraram histórias peculiares da família. (Foto: Marcelo Victor)
As fugas viraram histórias peculiares da família. (Foto: Marcelo Victor)

Eu nunca pensei em fugir de casa. E creio que nenhuma das minhas duas irmãs também não premeditaram nada do gênero. Mas, ao escrever essa reportagem, soube em detalhes da fuga do meu pai que merecia ser contada.

Aos 14 anos, único homem e filho caçula, ele saiu de casa vestindo duas calças, duas camisas e com o dinheiro da entrega que fazia dos doces do meu avô, destinado a ir para São Paulo estudar num colégio interno.

O fato já tem quase 50 anos, na época a ousadia e a cara de pau do meu pai fizeram com que ele tomasse ônibus sozinho, de Campo Grande até na frente do Juizado de Menores, em Santos. A fuga era para estudar, mas a decisão de fugir veio de uma série de fatores, entre eles as notas baixas do boletim.

Na segunda-feira premeditada, se despediu das irmãs e dos sobrinhos, murchou o pneu da bicicleta para dar a desculpa de que ia embora à pé e foi-se com a muda de roupa no próprio corpo para a rodoviária, que ainda ficava na rua Calógeras. O primeiro ônibus tomado foi para Dourados. Lá ele dormiu da casa de um conhecido da família e seguiu viagem logo cedo para São Paulo. Ao chegar, tentou se matricular no colégio interno. Não foi aceito, claro. Estava no meio do ano letivo e a sugestão fosse de que ele aguardasse completar o estudo da série. Da capital paulista foi para Santos e de lá um sítio próximo de Juquiá, onde foi descoberto.

"A comunicação era difícil e não dava tempo de eles chegarem em mim. Quando chegavam, já estavam ultrapassados", lembra. Foram cinco dias fora de casa até que o tio do sítio anunciou que recebeu a notícia. "Ele me disse 'ligaram e nós já sabemos de tudo', ele era muito simples, mas tudo ele se ajeitava. E lá foi meu pai me buscar".

A fuga valeu. Meu pai não apanhou dos meus avós e no ano seguinte conseguiu ir para o colégio interno. "Mudaram as condutas, a minha mãe era muito disciplinadora, muito rígida". O episódio entrou para a história da família, é um dos casos que ficaram na memória dos Oliveira, que aliás, é meu outro sobrenome.

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