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Comportamento

Bar no bairro São Francisco já foi o "supermercado" mais importante da cidade

Elverson Cardozo | 06/08/2014 06:45
Bar ocupa apenas uma parte do espaço. Comércio virou farmácia e loja de móveis e materiais usados para construção. (Foto: Marcelo Calazans)
Bar ocupa apenas uma parte do espaço. Comércio virou farmácia e loja de móveis e materiais usados para construção. (Foto: Marcelo Calazans)

Hoje o local é ponto de encontro da turma do rock, da galera que faz teatro e de outros movimentos alternativos de Campo Grande, mas o Vai ou Racha, bar que fica no final da rua 14 de Julho, quase esquina com a avenida Euler de Azevedo, no bairro São Francisco, já foi um dos estabelecimentos mais importantes e conhecidos da cidade.

“Era uma armazém enorme, como o Atacadão de hoje em dia”, relembra a filha do fundador, a agente agropecuária aposentada Ivanir Araujo dos Santos, de 58 anos. Atualmente, quem “reina” por ali é o Comper, mas o primeiro mercadinho da região, que tinha o nome do dono na fachada, ficou na memória da cidade.

A história do Vai ou Racha confunde-se com a do bairro que, há algumas décadas, era chamado de Cascudo (nome de um bolicho que ficou conhecido por servir cascudos fritos aos clientes). Apesar disso, a maioria dos campo-grandenses, especialmente os jovens, pouco ou nada sabem sobre ele, por isso Lado B resolveu voltar no tempo.

Ivanir Araujo tem tudo guardado na cabeça, mas a irmã, a advogada Irany dos Santos, de 65 anos, preferiu registrar. Consta, nos escritos dela, que o armazém, fundado na década de 50, foi o único, àquela época, a vender no atacado para o comércio local, alguns municípios e fazendas da região.

Foto antiga mostra armazém com nome na fachada. Comercio ocupava metade de uma quadra. (Foto: Marcelo Calazans)
Foto antiga mostra armazém com nome na fachada. Comercio ocupava metade de uma quadra. (Foto: Marcelo Calazans)

O dono, pai dela, Luziano dos Santos, comercializava de tudo um pouco: arreio, alpagartas, chapéus cury, calças, arroz, feijão, entre outros mantimentos, além de bebidas como cachaça, vinho, álcool e vinagre. Ele mesmo que engarrafava tudo, com ajuda da esposa e dos 9 filhos, 5 homens e 4 mulheres. A mercadoria, de São Paulo, vinha pelo trem, em vários tonéis.

“Quando a Maria Fumaça aparecia eu olhava e já via os barris de pinga. Saia correndo para lavar os litros, encher as garrafas e bater rolha. Acordava umas 4h, 5h da manhã”, relata um dos filhos, Italívio Carvalho dos Santos, de 66 anos.

O comercio de Luziano ocupava, diz Ivanir, uma área de 300 m², que compreendia o que hoje é o bar, uma farmácia de esquina e uma loja de móveis e materiais usados para construção. O espaço vivia cheio.

“Não existia outro do tipo em Campo Grande”, conta. “Aqui o pessoal vinha de carro de boi, enchia de compra e levava para a fazenda”, completa a técnica de transmissão e distribuição de energia, Irene Araújo dos Santos, de 58 anos, outra filha de Luziano. “Ele vendia na caderneta”, prossegue a irmã dela, a agente agropecuária.

Luziano dos Santos aos 76 anos. (Foto: Marcelo Calazans)
Luziano dos Santos aos 76 anos. (Foto: Marcelo Calazans)

Matéria do jornal São Francisco e Região, distribuído em 1999, na inauguração do Comper da 14 de julho, traz mais informações sobre a história do estabelecimento e uma entrevista com o próprio dono, quando ele tinha 84 anos.

“Eu me lembro que quando abri o Vai ou Racha a igreja São Francisco ainda nem existia e a região era temida pelos moradores de outros bairros de Campo Grande em virtude de o Cascudo ser esconderijo de bandidos famosos da cidade. Tinha um matador muito perigoso e temido até pela Polícia da época que gostava de ser chamado de Cascudo e, por esse motivo, alguns moradores diziam que o bar era desse bandido”, disse, na ocasião.

A reportagem afirma ainda que o estabelecimento era o ponto de parada das antigas “melancias”, como eram chamados os ônibus do transporte coletivo que circulavam pelas ruas da Capital nas décadas de 40 e 50.

O mercadinho, salvo as devidas proporções, podia ser comparado às grandes redes de hoje. “Nós éramos realmente o supermercado da época na região”, enfatizou o comerciante, em depoimento ao jornal.

Luziano e os filhos no carro, prontos para ir à fazenda em Rochedo. (Foto: Marcelo Calazans)
Luziano e os filhos no carro, prontos para ir à fazenda em Rochedo. (Foto: Marcelo Calazans)

Italívio, Ivanir, Irany e Irene lembram com carinho do pai, que morreu em setembro de 2004, 10 dias depois de completar 90 anos. “Foi de tristeza. Depois que ele perdeu a esposa, dois filhos e um neto ele não falava mais. Se fechou. Para conversar com ele tinha que perguntar. Meu pai se fechou no mundo dele”, afirma Irene.

Luziano, descrevem as filhas, era um homem humilde, mas batalhador e de grande personalidade. Nascido em Campo Grande, ele sempre morou no bairro São Francisco. Saiu de casa com 12 anos para lutar pela vida. “Sobrepondo as diferenças de raça e cor, soube angariar respeito e admiração de todos que o conheceram”, escreveu a advogada.

O comerciante foi, nas palavras dela, um “grande político, partidário da antiga UDN (União Democrática Nacional). Ajudou muitos homens a exercer funções públicas como as de governador, prefeito, deputados, entre outros”.

Em 1938, ela prossegue, Luziano casou-se com Ermelinda Araújo dos Santos, filha de imigrantes Portugueses. Teve com ela 9 filhos, 14 netos e 9 bisnetos. A família é grande, mas não se separa. Ivanir Irany e Irene moram juntas, em uma casa ao lado do bar. Italívio reside na mesma região.

Da esquerda para direita, os filhos no bar que ainda carrega o nome original: Italívio, Ivanir e Irene. (Foto: Marcelo Calazans)
Da esquerda para direita, os filhos no bar que ainda carrega o nome original: Italívio, Ivanir e Irene. (Foto: Marcelo Calazans)

O “verdadeiro” Vai ou Racha foi fechado na década de 80 porque seu Luziano, depois de muito batalhar, conseguiu comprar uma fazenda em Rochedo e foi viver a vida de produtor rural. Passou, então, a alugar o espaço que, nas mãos dos outros, já foi boteco e farmácia.

Com a retomada de parte do estabelecimento pela família, o nome original voltou à fachada, mas as portas se abriram para um bar. A administração atual está à cargo de Irene Araújo. Ultimamente ela tem cedido o espaço para encontros da cena alternativa.

O Teatro Imaginário Maracangalha, por exemplo, fez uma recente festa julina no local, que também abrigou, no último final de semana, a turma do rock. O bar abre de terça a sábado, das 13h às 23h.

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