ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no Twitter Campo Grande News no Instagram
ABRIL, SEXTA  19    CAMPO GRANDE 22º

Comportamento

Como morte ainda é tabu, partilha de bens tem briga até por aliança

Paula Maciulevicius | 04/11/2015 06:12
Depois do sepultamento, começa a briga. (Foto: Gerson Walber)
Depois do sepultamento, começa a briga. (Foto: Gerson Walber)

Na disputa pelos bens é que se conhece quem é quem na família. Durante o inventário, os herdeiros se revelam de maneira cruel. As brigas envolvem desde a aliança da mãe até a aparição de uma vida pouco honesta, com outros seis irmãos surgindo do nada para requerer direitos. O procedimento que dá sucessão ao que ficou de quem já se foi se desenrola como trama de novela. Para quem fica, os 60 dias seguintes parecem correr como ampulheta. É o tempo do prazo para se começar o inventário. 

O processo muitas vezes se arrasta justamente porque para o brasileiro a morte ainda é um tabu. Advogada civilista há 18 anos, Lauane Volpe Camargo, é quem faz a constatação. "No Brasil não há essa cultura de realizar testamento. O brasileiro é muito emocional e supersticioso, acredita que se tratar a questão patrimonial com a pessoa viva, vai atrair a morte", justifica a especialista. O documento que deixaria a partilha mais fácil, não existe na prática.

Os herdeiros legais seguem essa ordem: descendentes e cônjuges, ascendentes e colaterais, no caso tios, irmãos e sobrinhos. Mas todo processo é bem complexo para se dizer quem vai ficar com a herança. Dentro do processo jurídico, a família tem que levantar bens, reunir documentos e herdeiros para se chegar num consenso. Quando sim, o inventário pode ser resolvido em até 30 dias. Caso haja o desacordo, como acontece na maioria das vezes, aí vai para o judiciário. 

O momento é delicado porque as pessoas ainda estão em luto. Mas é em cima dessa problemática que vem à tona quem realmente são aqueles que você divide o sangue, a família e agora trava a briga pelos bens.

Briga por aliança, herdeiros que não se falam e até filhos não reconhecidos surgem na hora da partilha. (Foto: Gerson Walber)
Briga por aliança, herdeiros que não se falam e até filhos não reconhecidos surgem na hora da partilha. (Foto: Gerson Walber)

Dentro de um dos inventários que a advogada acompanhou, quatro irmãos bem sucedidos demoraram cinco anos brigando na Justiça pelos bens herdados dos pais. Eles brigavam tanto que até os advogados se cumprimentavam por mera educação/obrigação.

"Tiveram várias brigas, um dizia: 'a sede o papai fez para mim', outro que aquela parte da fazenda valia menos", recorda a advogada. Depois de recurso em cima de recurso, o caso foi parar na mediação. Foram necessárias 12 sessões que circulam entre o jurídico e a terapia para fazer os quatro voltarem a se falar. O desfecho foi a partilha de bens em consenso e um chamando o outro para ser padrinho de casamento do filho.

"Eles não entravam em acordo justamente porque traziam um histórico de problemas familiares", avalia hoje Lauane. E nisso a lei não consegue reger nada.

O mesmo acontece também por valores muito menores. Como uma casinha que fez duas irmãs entrarem em pé de guerra. O caso não se resolveu até hoje justamente porque uma não quer dar o braço a torcer. "São duas irmãs brigando, porque uma não avisou, a que morava com a mãe, que essa mãe foi para o hospital. Avisou depois e quando a irmã chegou, minutos depois ela morreu", conta Lauane.

A encrenca começou no velório e se arrastou para os tribunais. "Uma construiu uma casa no terreno da casa da mãe. O marido que construiu quer pagar para a outra, mas ela não aceita. Aí o juiz vai ter que decidir essa situação", relata a advogada.

Até louça vira alvo de disputa. A aliança da mãe, também. "Eu diria que as pessoas se revelam e muitas vezes não têm um diálogo. Se não tem, não vão conseguir resolver e não tem como o legislador trazer resposta", pontua a advogada.

A aliança deixada pela falecida foi um drama à parte até decidir para qual filho ficaria. No caso, a especialista narra que ali estava embutido mais uma carga emocional do que financeira. "Propomos avaliar quanto vale o peso do ouro para compensar com outro patrimônio, mas o filho disse que não. É esse tipo de discussão que surge em inventário".

Muitas vezes os herdeiros já chegam para os advogados sem se falar. E o impasse é potencializado durante o processo. E como novela, também já apareceram filhos não reconhecidos. Seis de uma só vez. "O autor da herança era casado e tinha três filhos, de repente surgiram mais seis e o direito dos filhos é igual. No final, todos foram reconhecidos e a herança dividida", lembra.

Se é possível medir, pelo inventário, a saúde das relações? Lauane responde que sim. "É na disputa patrimonial que se potencializa as diferenças que já existiam. É sempre um drama e as pessoas ficam com a vida emperrada, elas precisam resolver e não conseguem. Coisas que o papel pode resolver, mas a questão emocional impede".

Curta o Lado B no Facebook.

Nos siga no Google Notícias