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Comportamento

Corintiano, Silvio aprendeu a enxergar com coração não só o time, mas até a vida

Paula Maciulevicius | 29/09/2016 06:20
Sorridente, Silvio enxerga com o coração desde os 13 anos. (Fotos: Paula Maciulevicius)
Sorridente, Silvio enxerga com o coração desde os 13 anos. (Fotos: Paula Maciulevicius)

A última cena que os olhos de Silvio enxergaram foi da mãe no hospital. Um vulto que remete a uma triste lembrança, de uma mãe que via o filho prestes a ficar cego. O garoto nasceu com glaucoma, doença que aumenta a pressão nos olhos, mas que até os 13 anos foi controlada. Os médicos acreditam que um tombo de bicicleta causou não só o descontrole da pressão, como o descolamento da retina. E foi assim que ele perdeu a visão.

Foram oito cirurgias desde dezembro de 1989 e no decorrer de 1990, em São Paulo, Campinas e Belo Horizonte e nenhuma deu certo. Mas pelo tempo que viu, Silvio tem referência visual de tudo. 

Jornalista e advogado, Silvio Henrique Lemos tem hoje 39 anos, é funcionário público no TRT, toca violão, tem uma filha linda e conta sua história hoje, aqui no Lado B.

Quando ele diz que tem referências visuais, ele quer dizer que sabe como é uma pessoa baixinha, morena, de cabelos loiros, olhos de tal cor. E é assim que tento me apresentar.

Tecnologia transforma em voz tudo aquilo que Silvio não consegue ler.
Tecnologia transforma em voz tudo aquilo que Silvio não consegue ler.

"Quando as pessoas descrevem alguma coisa, eu consigo ter noção de uma imagem não real, mas muito próxima da realidade. Camisa azul, vermelha, se é bonito ou feio, se bem que isso é muito subjetivo", brinca.

Aliás, brincalhão é pouco para definir Silvio. De sorriso aberto, ele ri da própria deficiência, quando se pega em algumas situações que a gente pode ter cometido sem nem se dar conta. Um exemplo? "A pessoa não pode ver o cego em pé que quer que ele sente. Mas o problema não está na perna e sim nos olhos", relata. Outro é quando ele mesmo se pega ouvindo rádio muito alto. "Pô, além de cego, também é surdo?" diz a si mesmo.

Silvio foi casado durante quase 10 anos e separado há pouco mais de um, pode ser que você o veja nos barzinhos da cidade ou em reuniões de casa de amigos. Se for na segunda opção, provavelmente ele vai estar com violão nas mãos.

"Se eu tocasse flauta, ninguém me chamava para os churrascos", brinca. E se o ver, pode se achegar, que assunto ali ele tem de sobra.

Nas reuniões de amigos, sempre ele está ali, com o violão nas mãos. (Foto: Arquivo Pessoal)
Nas reuniões de amigos, sempre ele está ali, com o violão nas mãos. (Foto: Arquivo Pessoal)

"Uma vez saí daqui sozinho, de ônibus, para assistir ao jogo do Corinthians. Não teve nenhum amigo aqui que tivesse interesse. Cheguei no Pacaembu, encontrei uns loucos e falei: dá uma força aí mano que eu não enxergo. E caímos pra dentro", recorda. "Coisa de moleque, hoje eu não faria mais isso não, eu tinha 18", se explica. 

A sequência de cirurgias sem sucesso mostraram a ele que voltar a enxergar não seria possível naquele momento. Então, Silvio focou em voltar a estudar e no violão que havia ganhado de uma tia, um ano antes.

Como a irmã era mais nova, o ano que ele se dedicou à saúde fez com que eles fossem para a mesma série. Uma grande ajuda à época, principalmente porque ele precisava aprender a estar no mesmo lugar, sem enxergar. 

"As pessoas me conheciam enxergando, depois foi uma readaptação. Foi tudo muito estranho, as pessoas têm medo, principalmente os jovens. É medo do novo, do que foge do ordinário e isso choca as pessoas. No começo, o preconceito não sei se é a palavra mais correta, mas as pessoas tinham uma resistência de chegar, eu era o diferente da sala", recorda.

Facilidade de fazer amigos, Silvio sempre teve. Então soube contornar essa e muitas situações que vieram na sequência. A primeira renda dele foi das aulas de violão. O instrumento que estava jogado em casa veio à tona no ano em que ele parou a vida escolar. 

"Aí vinha um, me ensinava uma coisinha, outro, outra. Eu entendi a dinâmica e depois fiz uns dois, três meses de aula para pegar a técnica", conta. Depois, seguiu sozinho e chegou a dar aulas em casa e também na residência dos alunos.

Na transição de escola e faculdade, Silvio teve uma banda "Os bucéfalos" e se apresentou em festivais. 

Quando resolveu seguir faculdade, começou Jornalismo na UFMS e Direito na UCDB, levando para as universidades, a mesma metodologia adotada nos tempos de escola, de fazer provas orais, gravar a explicação dos professores e quando eram matérias, ditar os textos.

Silvio em uma das idas ao estádio para conferir o jogo do Timão. (Foto: Arquivo Pessoal)
Silvio em uma das idas ao estádio para conferir o jogo do Timão. (Foto: Arquivo Pessoal)

O que fez com que ele sempre desse o máximo de si. "Eu tinha muita vergonha de não saber a resposta. Porque no papel, você faz um 'x' e ninguém vai saber, agora ali, o cara te perguntar na lata e você não saber? Eu me cobrava muito para não passar por esse constrangimento", relata. 

Mas isso foi até a chegada da tecnologia. Hoje, Silvio vive a era dos programas de sintetizador de voz que leem as telas do computador, os aplicativos de celular e o recurso do próprio Facebook, que descreve em palavras-chave, o que a foto publicada mostra. 

Silvio mora sozinho agora, tem diarista e faz as compras pela internet. Vê a filha crescer não com os olhos, mas com as mãos e o sentimento. A pequena tem consciência de que o papai não enxerga. "Papai tem dodói no olho, tem que ver com a mão, desde sempre falamos isso para ela e ela tem muita referência, pega a minha mão e leva no desenho dela. Ela imagina que eu enxergue com as mãos", ri. 

A bengala é instrumento que quase não aparece em cena. Talvez por medo, na adolescência, Silvio quase foi atropelado e decidiu que a liberdade dada pelo apoio poderia ser perigosa. 

Os amigos, ele triplicou depois que não enxergou mais. Mas isso fica muito fácil de se sentir. Silvio faz amizade até com quem lhe entrevista. 

Aprender a tocar foi o primeiro desafio dele na fase das cirurgias para tentar voltar a ver. (Foto: Arquivo Pessoal)
Aprender a tocar foi o primeiro desafio dele na fase das cirurgias para tentar voltar a ver. (Foto: Arquivo Pessoal)

A vida tem passado diante dos olhos de Silvio como nuvens coloridas. Cada dia de uma cor. "Como a retina é quem manda a imagem para o cérebro e para o olho enxergar, como a minha está descolada, acho que fica bagunçada lá dentro e talvez ela pegue algum resquício", explica.

É o que justificam as cores. "Hoje está predominantemente azul, às vezes branco, meio tom de vermelho, é uma coisa muito louca. Mas o legal é que nunca é preto, porque acho que seria uma coisa muito esquisita", revela. 

Os olhos de Silvio não enxergam nem 1% e nem sequer o apagar e acender das luzes. "O legal é que pela referência visual que eu enxerguei, consigo ter uma ideia de tudo, não perfeita, mas muito próxima da realidade". 

Corintiano "roxo", ele explica que a emoção maior sempre esteve em ouvir a narração das partidas de futebol. Acompanhar pelo rádio é melhor do que pela TV. "Nas imagens, o narrador tem que aplicar detalhes mais específicos do jogo, dos lances. A preferência em ouvir rádio, é porque é fantástico", descreve.

Certa vez, Silvio foi entrevistado pelo repórter da Transamérica num estádio em São Paulo. "Ele viu que eu não enxergava e me perguntou: que graça tem estar aqui sem ver? E eu disse: jogo do Corinthians não foi feito para ver com os olhos, mas ver com o coração. Estou aqui sentindo a emoção e isso é uma coisa que me marcou muito".

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