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Comportamento

Da avó que apoiou o neto trans, carta foi despedida com recado sobre o amor

Paula Maciulevicius | 20/10/2016 07:44
Patrizio e a avó, dona Vera no último Ano Novo que passaram juntos, em dezembro de 2015. (Foto: Arquivo Pessoal)
Patrizio e a avó, dona Vera no último Ano Novo que passaram juntos, em dezembro de 2015. (Foto: Arquivo Pessoal)

Dona Vera é tudo para o neto. Do cuidado de uma vida ao bom dia que ele dá a ela até hoje. A avó foi a primeira pessoa a chama-lo de Patrizio quando ele anunciou que a partir de janeiro deste ano, era com o gênero pelo qual se identificava que gostaria de ser visto, respeitado e chamado. Sem saber que estava para partir, Vera se despediu por carta. Velho costume de avó e neto.

Transformação de Patrizio começou em janeiro. (Foto: Alcides Neto)
Transformação de Patrizio começou em janeiro. (Foto: Alcides Neto)
Patrizio é tatuador e desde o início recebeu o apoio da avó. (Foto: Alcides Neto)
Patrizio é tatuador e desde o início recebeu o apoio da avó. (Foto: Alcides Neto)

“Patrícia/Patrizio, não importa o que você foi, o que você é ou o que você vai ser. Eu amo você do jeito que você é”... A carta chegou na sexta-feira, dia 24 de junho, em Campinas, cidade onde Patrizio foi morar no início do ano. O neto estava no aguardo, porque por telefone, na penúltima ligação, ela perguntou se podia voltar ao hábito de escrever.

Os dois conversaram num sábado e na quinta seguinte. Já na última ligação, Vera comentou que não estava se sentindo bem, mas que deveria ser só a labirintite. “No sábado, conversamos bastante, ela sempre fala muito. Na quinta, ligou de novo e só falou: ‘tô bem’, mas eu não senti firmeza não”, comenta Patrizio Flamariom Diniz, de 22 anos. Quando o neto questionou, ela disse que assim que comprasse o remédio, melhoraria.

Na carta, ela continua escrevendo com carinho para Patrizio e indica, com uma seta, para que o neto vire, porque tem escritas no verso. “Virava e ela falava assim: ‘dê agradecimentos por mim aos que estão tendo cuidado com você. Um beijo no fucinho do Nero por mim, manda beijo para sua mãe, irmão e as meninas. Espero um dia poder voltar logo”.

Avó acompanhou parte do processo e saudade continua a doer. (Foto: Alcides Neto)
Avó acompanhou parte do processo e saudade continua a doer. (Foto: Alcides Neto)

Depois de lida, a carta foi guardada na caixinha de recordações de avó e neto. Na madrugada seguinte, dona Vera partiu, aos 60 e poucos anos, às 3h da manhã, enquanto dormia.

Patrizio, que é tatuador, já foi reportagem no Lado B quando tatuou o rosto com a palavra que mais remetia à avó e aos demais: família. À época, ele ainda não estava no processo de mudança de gênero, que só pode ser iniciado no Estado de São Paulo.

“Faço minhas pesquisas já faz uns quatro anos. Ano passado, após sofrer uma humilhação, decidi assumir pra minha família e pra quem eu achava necessário, que eu ia fazer a transformação, que eu não estava louco, que não era uma mentira. Eu posso me transformar, eu posso ser sim o que eu sou”, descreve Patrizio.

A última conversa pessoalmente com a avó, foi em maio. Quando o neto foi internado depois de uma tentativa de suicídio e só se deu conta de que estava vivo três dias depois, quando Vera entrou no quarto. “Ela ficou uns 20 dias na cidade, mas disse que queria ir para passar o Dia das Mães com a mãe dela, que poderia ser o último. E no final, minha bisavó está viva e quem morreu foi minha vó”, desabafa.

No sábado de 25 de junho, Patrizio conta que acordou tarde, foi até a casa da mãe para então ir a um evento de motos. Ao chegar lá, se deparou com todos muito sérios e sem pensar duas vezes, perguntou se ele havia feito alguma coisa ou se alguém tinha morrido. “Mãe, morreu alguém? E ela disse sim, sua avó. Eu dizia mentira, mentira, ligava, ligava pra ela e ninguém atendia”. Aos familiares daqui, a mãe de Patrizio implorou para que esperassem ele chegar para o velório.

“A hora que eu olhei, não parecia que era ela, parecia um boneco de cera, não tinha expressão, nem nada. Entrei em choque, só quando meus amigos começaram a chegar que eu percebi que era verdade, eu não estava sonhando. Mas não era justo, eu nem estava aqui, porque se tivesse, teria levado ela no médico”, se culpa.

A carta que chegou às vésperas da partida dela. (Foto: Alcides Neto)
A carta que chegou às vésperas da partida dela. (Foto: Alcides Neto)

De volta à cidade, ele conta que ficou depressivo e só saía de casa para passear com o cachorro, Nero.

“O que ficou dela? Saudade, ela era tudo. A única que me mantinha firme, me dava ajuda, era meu porto seguro e quando eu perdi ela, perdi o mundo. Se pra mima vida não valia mais a pena antes – tentei me suicidar – dizia que não aguentava mais e ela falava: eu que não aguento ver você fazendo isso com você”.

De vida nova, em novo Estado, desde o início do ano, Patrizio tem passado pelo centro de referência LGBTT e assim que teve o laudo em mãos, foi a avó que o levou para comprar o primeiro ciclo de testosterona e o primeiro Prestobarba. “Ela acompanhou tudo, comprou até meu último ciclo”, conta.

E não é que hoje ele seja um homem trans, apenas depois do tratamento que ainda está sendo feito. “Eu nasci um homem trans, porém eu não tinha conhecimento de que isso era possível. Por muito tempo na minha vida, fui rotulado pela sociedade, sendo que eu não me enquadrava em nenhum deles. Era o que a sociedade dizia de mim e não o que eu dizia que sou”, explica.

Quando foi casado com uma mulher, aos 15 anos, é que percebeu pela primeira vez que gostaria da mudança. “Eu falei que não queria ter filhos num mundo homofóbico e que tinha um sonho, que eu não era contente com o que nasci e que não sabia agora, mas que um dia eu ia poder ser o que eu sou por dentro. Ter um corpo, um genital e barba”, lembra.

E quando o passado vem à tona, resgata junto a avó Vera. “Eu pegava o lápis de olho dela e rabiscava barba em mim. A hora que ela vinha, pegava a toalha e limpava tudo. Toda semana era um lápis...” e da memória vem o riso.

A barba, sonho de Patrizio ainda menino, está fechada no rosto. “Ela vem com o tempo, deixo crescer um mês e aí apara”, explica. Referir a si mesmo no masculino não fora difícil, porque por dentro, ele sempre se viu assim. Até mesmo os amigos não conseguiam falar dele como “uma mina”. E por anos, foi Patt, um apelido que apresentou Patrizio a todos.

“Quando eu olho no espelho, estranho, porque a vida mudou. Não foi só eu. Não é só olhar no espelho e ver uma imagem diferente. Você olha e a minha avó não está aqui. E eu estou totalmente diferente, a mudança é rápida”, descreve.

Patrizio agora espera ser chamado no Hospital das Clínicas, de São Paulo, para as cirurgias. E conta com o apoio da mãe e dos irmãos. Até onde ele quer ir? Não sabe. “No momento é passo a passo”.

E não ter a avó aqui, não significa, para ele, que ela não esteja perto. “Ela está vendo, sinto ela todo dia do meu lado. Eu choro bastante, sou bem chorão, mas sempre falo: ‘não estou chorando para você se prender a mim, é só porque eu estou triste’. Eu fico falando sozinho: bom dia vó, boa noite vó”, conta.

Às vezes, a saudade é tanta que ele chega a ligar para o celular que ela antes atendia. “Ela foi a primeira pessoa a me chamar de Patrizio: ‘assim que você prefere? Eu te amo da forma que for’”, recorda. “E de certa forma, ela tinha orgulho de eu dizer que estava feliz, que queria ser feliz, ela viu que eu não era feliz daquele jeito e ela fez muito mais do que deveria por mim”.

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