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Comportamento

Desiludido com o amor, José passa os dias entre os sapatos vendo a vida passar

Thailla Torres | 15/10/2016 07:10
José prefere a solidão à má companhia depois de amores perdidos. (Foto: Fernando Antunes)
José prefere a solidão à má companhia depois de amores perdidos. (Foto: Fernando Antunes)

Aos 68 anos, José Pereira Lima é um homem de poucos sorrisos, mas que carrega uma gentileza no olhar. Dono da Sapataria Milano há 25 anos, no bairro Monte Líbano, desapegou dos amores que teve na vida, para seguir os dias na companhia do amontado de coisas que vem acumulando.

O prédio é pequeno e existe há cerca de 70 anos. Com fachada antiga e desbotada, dentro há uma pilha de sapatos sobre a mesa e também pares espalhados no chão. Nas prateleiras, os moldes dividem espaço com a poeira e a Bíblia que parece intocada.

É tanto calçado que fica difícil acreditar que José sabe de quem são todos. Mesmo assim, garante que não se perde. "Tem de tudo aí, esses daqui já estão separados para arrumar e outros já estão prontos", diz, revirando alguns pares jogados, além de bolsas, malas e pedaços de couro espalhados por toda parte. 

José diz que consegue achar tudo que deseja na bagunça. (Foto: Fernando Antunes).
José diz que consegue achar tudo que deseja na bagunça. (Foto: Fernando Antunes).
Fachada é antiga e já está desbotada. (Foto: Fernando Antunes)
Fachada é antiga e já está desbotada. (Foto: Fernando Antunes)

Sentado sem camisa, por conta do calor, e com a televisão no máximo volume, José recebe o Lado B desconfiado, mas sem medir as palavras na hora de falar da profissão e, principalmente, do amor, tema presente a cada diálogo.

Ainda na infância, José estudou em colégio interno e foi lá que aprendeu a ser sapateiro. "Comecei lá essa profissão. Primeiro fui para alfaiataria, mas vi que não ganhava nada, depois aprendi fazer sapatos. Costurava coturnos para os militares", lembra

Conta que nasceu na Bahia e foi criado em Fortaleza, lugar cenário de suas desilusões amorosas até chegar a Campo Grande.

Apesar da idade, nem os problemas o deixaram de cabelos brancos. O segredo ele justifica na tranquilidade. "Não me importo mais com nada", diz. É um aviso para quem acha que ele não está bem, quando na verdade, José diz ser um homem que preferiu a solidão ao se cansar das más companhias.

Mas nem tudo foi história triste na vida do homem solitário. Seu José já esteve muito bem acompanhado nos cabarés de Fortaleza, garante. Juventude que lembra com orgulho, mesmo com amores tão passageiros.

Sem camisa, ele passa os dias sentado entre sapatos. (Foto: Fernando Antunes)
Sem camisa, ele passa os dias sentado entre sapatos. (Foto: Fernando Antunes)

"Tinha pelo menos uns 12 na cidade. O que eu mais gostava era o Fascinação, mas tinha também o Bar da Alegria. Eu gostava mesmo era da noitada", lembra, deixando escapar um sorriso.

"Eu me dava muito bem com a madame. Tinha quarto com café da manhã, almoço e janta. As mulheres ganhavam um percentual em dinheiro nas doses de uísque. Era incrível como elas bebiam sozinha um litro de uísque e não ficavam embriagadas. Já o homem ficava bêbado.", descreve.

Mas teve tempo de se apaixonar. "Eu gostei de uma mulher em uma boate. Ela era bacana e paraense. Na época era novo e vi que ninguém na verdade leva nada dessa vida", reflete.

Depois da vida de solteiro, veio o casamento, um dos maiores motivos de viver sozinho nos dias de hoje. José diz que sofreu desilusões, perdeu a família e os bens. "Perdi uma casa olhando pro mar...", conta, aparentemente sem vontade de lembrar da ex-mulher que ele chama de finada.

"Olha, eu sei que errei, mas vou lhe dizer uma coisa, hoje eu não quero nem contato com a finada. Chamo assim, porque pra mim ela morreu. Não me traiu, mas foi pior do que me trair, mentia e enfim... deixa pra lá."

A decadência e a desorganização que chegou ao local, José resume na dificuldade para manter a profissão. "Muita concorrência e tive que dimunuir o preço." Tem gente que ainda frequenta pela confiança no trabalho, mas é pouca coisa. "Ainda recebo muito calçado de madame, que eu sei como arrumar. O duro é que aqui tem pouco material de qualidade para comprar. e salto, só se for de São de Paulo".

O sapateiro lembra ainda que os tempos são outros e tem gente que prefere se desfazer, no lugar de arrumar. "Hoje as bolsas são todas sintéticas, a mulherada compra cinco de uma vez. Ninguém tem uma de couro boa. O sapato então, vem com papelão na palmilha", reclama.

Pai de 5 filhos, gentil e disposto a conversar, José parece decidido em passar o resto dos dias sozinho. "Na minha idade, preciso me importar com o que? Cada um está seguindo sua vida. Eu sigo a minha, fumo meu cigarro e tomo minhas duas cervejinhas por dia. Até agora não me deu nada", acredita.

No braço direito, a tatuagem mostra um coração com algumas palavras que já não estão mais visíveis. E José dispara mais um vez sobre o amor em sua vida. "Sabe, minha única ruína foi amar... só isso. O resto não preciso me preocupar", desabafa.

"Minha única ruína foi amar" diz o sapateiro. (Foto: Fernando Antunes)
"Minha única ruína foi amar" diz o sapateiro. (Foto: Fernando Antunes)
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