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Comportamento

Par de botas mudou de dona, porque a imprudência fez Jaqueline amputar a perna

Adriano Fernandes | 03/05/2016 06:05
Depois de ter a perna amputada, Jaqueline conta que os desapegos e aprendizados são diários. Aprender a voltar a andar é um deles. (Foto: Alcides Neto)
Depois de ter a perna amputada, Jaqueline conta que os desapegos e aprendizados são diários. Aprender a voltar a andar é um deles. (Foto: Alcides Neto)

Os desafios são diários durante a readaptação na nova vida que a técnica de enfermagem Jaqueline da Silva Tsalikis, de 34 anos, se deparou há cinco meses. Depois de um acidente de moto e a amputação de parte da perna direita, mudaram as prioridades, os sonhos e a rotina de quem, desde sempre, foi super ativa.

O dragão tatuado no pé direito era o xodó de Jaqueline. Na sua prótese, ela brinca que irá mandar fazer um desenho semelhante. (Foto: Arquivo Pessoal)
O dragão tatuado no pé direito era o xodó de Jaqueline. Na sua prótese, ela brinca que irá mandar fazer um desenho semelhante. (Foto: Arquivo Pessoal)

A estudante de Educação Física também era ciclista, árbitra de atletismo, dançarina e socorrista do SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência). Tudo está comprometido no processo de recuperação que também é repleto de desapegos. Com a amputação, foi embora o dragão tatuado no pé e que tanto dizia sobre sua personalidade. O fim do namoro também entra na lista de perdas que ela teve de encarar depois do acidente.

Nessa rotina de limpar o que não tem mais sentido, até pequenas conquistas perdidas doem. O Lado B chegou até Jaqueline graças a post no Facebook onde ela explica os motivos que a levaram a doar um par de botas à irmã. O modelo perfeito para o inverno, mas que só saiu da caixa duas vezes. 

“Eu já superei o trauma de que eu nunca mais vou voltar a usar um par de botas ou qualquer outro par calçados de salto, por exemplo. Até sinto falta, quando vejo outra mulher usando um salto ou alguma sandália que eu também usaria, mas eu estou aceitando essa realidade por etapas”, diz.

Os outros calçados ela também vai se desapegando aos poucos, assim como do apartamento onde morava sozinha, e teve de alugar porque voltou a morar com os pais. 

“Quando eu me sentei pela primeira vez na maca após a cirurgia, eu tive a consciência de que eu teria de aceitar o fato de que a partir dali minha vida se encaixaria na categoria de um deficiente físico. Que é um mundo completamente diferente do de uma pessoa ´normal'. É como se eu tivesse nascido de novo e agora estou aprendendo a me superar, adaptando minhas rotinas diárias e reaprendendo o que o meu corpo é capaz de fazer”, comenta.

O par de botas que Jaqueline adiou a compra, ela usou apenas duas vezes esperando novas oportunidades. (Foto: Alcides Neto)
O par de botas que Jaqueline adiou a compra, ela usou apenas duas vezes esperando novas oportunidades. (Foto: Alcides Neto)

Jaqueline conta que se lembra até hoje dos detalhes da noite daquele dia 29 de novembro de 2015, quando foi atingida por outro motociclista que seguia na Avenida Ernesto Geisel. “Era por volta das 21h40 e eu tinha acabado de sair da casa dos meus pais e estava indo para o meu apartamento. Eu estava andando em baixa velocidade, porque o trecho por onde eu estava passando não tinha iluminação pública, quando surgiu o outro motociclista na contramão”, lembra.

Os dois colidiram de frente e, apesar da força do impacto, ela conta que não perdeu a consciência, mas se recorda dos momentos de angustia que passou após a batida.

“Eu tive apneia, fiquei sem respirar por alguns instantes. Quando recobrei minha consciência eu já notei que tinha tido fraturas expostas numa mão e no fêmur e comecei a gritar o mais alto que podia, porque eu ainda que estava no meio da pista escura, sem poder me mexer e ainda correndo o risco de ser atropelada”, conta.

Foi a própria Jaqueline quem pediu as viaturas de salvamento e comunicou um irmão sobre o acidente, enquanto aguardava socorro. Ali, ela já sabia da gravidade de seus ferimentos. “Aquela noite havia naquele leito de hospital o meu lado de socorrista e o de vítima. Profissionalmente, eu sabia que não havia mais nada a fazer, mas como vítima de um acidente eu não queria acreditar”, se emociona. Durante a cirurgia Jaqueline ainda teve duas paradas cardíacas.

No acidente, além de ter a perna amputada ela também teve 10 fraturas na mão direita. (Foto: Alcides Neto)
No acidente, além de ter a perna amputada ela também teve 10 fraturas na mão direita. (Foto: Alcides Neto)

“As pessoas muitas vezes me perguntam qual foi o médico que me amputou. Eu respondo que o meu médico fez uma limpeza. Quem me amputou de verdade, foi um criminoso”, completa sobre o outro motociclista envolvido no acidente. Jaqueline suspeita que o rapaz estava sobre efeito de drogas e álcool.

“Ele também teve um pé amputado e até chegou a ficar escoltado pela polícia, por dois dias. Mas não pelo que fez contra mim e sim porque ele devia pensão alimentícia. Até que a família dele pagou a dívida e cinco dias depois ele já teve alta do hospital”, se queixa.

O sentimento de impunidade é o único fato que ainda gera revolta em Jaqueline, não só pelo que lhe aconteceu, mas também por ser uma realidade para a maioria de outros casos de amputação no País.

“Depois do acidente eu passei a conhecer pelo menos 100 amputados e apenas dois deles foram os próprios responsáveis pelo acidente. Os outros casos foram todos vítimas de criminosos. Se vivêssemos em um país decente, estes criminosos não só seriam presos como pagariam de dentro da cadeia, os custos médicos da vítima”, desabafa.

Com o apoio de amigos que fizeram rifas e até organizaram almoço beneficente para ela, Jaqueline conseguiu arcar com os primeiros custos dos medicamentos e fazer as alterações estruturais de readaptação em casa, desde o valor das muletas até a colocação de barras de apoio no banheiro, por exemplo.

“Hoje em dia no meu banheiro, tem uma cadeira de banho. Barras espalhadas para todos os lados e, claro, eu já me peguei chorando muito por olhar a minha volta e saber que eu tenho de aceitar essa realidade, porque é nela que eu vou viver para o resto da minha vida. Mas eu tento sempre direcionar todas as minhas energias para a minha reabilitação”, diz emocionada.

"Já me peguei chorando muito por olhar a minha volta e saber que eu tenho de aceitar essa realidade". (Foto: Alcides Neto)
"Já me peguei chorando muito por olhar a minha volta e saber que eu tenho de aceitar essa realidade". (Foto: Alcides Neto)

Readaptação – Boa parte do progresso no tratamento de Jaqueline, sem dúvida, se deve a uma determinação que fica clara. Depois de 60 dias, ela se livrou dos pinos e gessos que a limitavam ainda mais e, mesmo sem a recomendação dos médicos, saiu também da cadeira de rodas. Tudo para que ela pudesse voltar a cursar o último ano da faculdade de Educação Física.

“Eu ainda estou nesse processo de superação, mas desde quando me vi sem uma das pernas, ainda no hospital, eu decidi que eu teria de ser forte o tempo todo. Primeiro, porque nada mais vai trazer a minha perna de volta e, segundo, para não machucar quem estivesse a minha volta: pais, amigos”, explica.

Os movimentos da mão direita, que também teve graves lesões, estão voltando ao normal aos poucos. Mas para escrever, por exemplo, Jaqueline ainda usa adaptadores. Ela também tem o acompanhamento de médicos e de fisioterapeutas da APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Campo Grande) enquanto tenta conseguir com o governo estadual, uma prótese que melhor atenda o seu tipo de lesão.

“Mas eu sei que é um processo ainda muito longo. Eu ainda sinto a dor do membro fantasma, tenho que cuidar a questão da postura, sem falar da luta por uma prótese que é um processo muito demorado. E eu conseguindo a prótese, ainda tenho que reaprender a andar com ela sem poder sentir os pés, por exemplo, mas desde já estou me preparando”, detalha.

Com 60 dias Jaqueline saiu da cadeira de rodas para voltar a faculdade. O adaptador de canetas virou seu companheiro nos estudos. (Foto: Alcides Neto)
Com 60 dias Jaqueline saiu da cadeira de rodas para voltar a faculdade. O adaptador de canetas virou seu companheiro nos estudos. (Foto: Alcides Neto)
Alguns dos aparatos que Jaqueline usa na fisioterapia, para recuperação dos movimentos na mão. (Foto: Alcides Neto)
Alguns dos aparatos que Jaqueline usa na fisioterapia, para recuperação dos movimentos na mão. (Foto: Alcides Neto)

Com a amputação, mudaram também as prioridades de Jaqueline. Ela já planeja até o desenho que irá mandar fazer na prótese que tanto quer, para compensar a perda da antiga tatuagem. Este ano, ainda irá concluir a faculdade e pretende comprar o primeiro carro adaptado.

Outro de seus maiores desejos é voltar ao trabalho com a “Família Samu”, como ela chama os companheiros de trabalho. Há oito anos ela atua como técnica no suporte básico das viaturas de salvamento na cidade.

“Provavelmente não vai ter como eu voltar a tripular uma viatura sozinha, por exemplo. Mas tenho um projeto de melhoria no condicionamento e na qualidade de vida dos profissionais do SAMU, que desejo botar em prática”, comenta.

Essas e muitas outras vontades ela já diz traçar como metas diariamente. Voltar a pedalar também é uma delas. "Todo dia desde o acidente eu faço uma listinha de sonhos, transformo em metas e busco conseguir realizá-los. Aos poucos, vou me desapegando da vida que eu tinha, para me adaptar a uma nova realidade onde algumas coisas terei que reaprender a fazer. Uma delas é voltar a andar.”

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Um dos maiores desejos de Jaqueline é voltar a trabalhar no SAMU, onde já atua como socorrista há 8 anos. (Foto: Alcides Neto)
Um dos maiores desejos de Jaqueline é voltar a trabalhar no SAMU, onde já atua como socorrista há 8 anos. (Foto: Alcides Neto)
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