ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no Twitter Campo Grande News no Instagram
ABRIL, QUINTA  18    CAMPO GRANDE 23º

Comportamento

Em barracão da Valderez, gari esquece prisão e vive a vida sem medo de ser feliz

Paula Maciulevicius | 25/01/2016 07:27
Valéria e o sorrisão aberto. Gari não tem medo de ser feliz. (Foto: Eliel Oliveira)
Valéria e o sorrisão aberto. Gari não tem medo de ser feliz. (Foto: Eliel Oliveira)

A marca registrada de Valéria é o sorriso. Para chegar a essa conclusão a gente nem precisa conhecê-la pessoalmente. Na rotina de postagem do Facebook, tem selfie numa pausa do trabalho como gari em Dourados e também do passeio de ônibus no final de semana. Figura na cidade, Valéria Maria Manzato tem 49 anos, nove deles vividos atrás das grades e um sorriso no rosto de quem quer compensar tudo agora.

Feliz da vida, ela aceita na hora o convite para falar da própria vida soltando um "dinheiro eu não tenho, mas glamour..." e claro, cai na risada. Nascida em Piracicaba, no interior de São Paulo, veio fugida das enchentes, na década de 80, para Dourados. Teve duas filhas e viu o marido morrer de câncer. Fazia faxina e catava reciclados no lixão, passou fome também e morou por duas vezes em barracos feitos a partir de lona doada.

Até quando não tinha nada, dividia tudo. "Ficava muita coisa pra mim do lixão, então eu doava. Não dá para ficar com tudo sabendo que a situação da vizinha é igual a minha", explica. A vida dela dava um livro ou novela. É um vai e vem de coisa como se na narração o passado explicasse quem ela é no presente e o que quer para o futuro.

Barracão foi transformado em
Barracão foi transformado em
Centro Comunitário do bairro. (Fotos: Eliel Oliveira)
Centro Comunitário do bairro. (Fotos: Eliel Oliveira)
Primeira reforma começou por Valéria, que conseguiu rifar uma égua para custear. (Foto: Eliel Oliveira)
Primeira reforma começou por Valéria, que conseguiu rifar uma égua para custear. (Foto: Eliel Oliveira)

A vida melhorou e as doações também. "Roupa, brinquedo, saio doando para a vizinhança. Por que? Porque eu acho que só o amor que pode salvar as situações de um bairro carente. Ninguém nasce marginal, se tornam. E se você for pensar por esse lado, a vida é muito dura e muito cruel".

Foram nove anos no Carandiru depois de ser enquadrada em tráfico de drogas e contrabando de armas. A pobreza foi a justificativa dela para aceitar a proposta de levar droga e armas. Há 15 anos ela está solta. Saiu de São Paulo caçando a família aqui, ficou com duas filhas por uma semana na rua. E quando veio a lona para o barraco, o pedaço era tão grande que deu para fazer 15 deles e dar teto a quem vivia com ela pelas calçadas.

Se as oportunidades antes lhe faltavam, com uma prisão no histórico aí que se reduziam a zero mesmo. Antes de pensar em voltar para o crime, teve de cometer um pequeno delito, mas era para a reconstrução da família. "Uma amiga disse: - você quer mesmo voltar a trabalhar? Então a gente vai fazer uma carta de recomendação para você e eu vou ser sua falsa patroa", lembra. Deu certo e Valéria conseguiu a vaga de empregada doméstica por 28 dias.

Ela no caminho de casa para o trabalho, dessa vez, o social. (Foto: Eliel Oliveira)
Ela no caminho de casa para o trabalho, dessa vez, o social. (Foto: Eliel Oliveira)

"Saí porque fiquei com medo, a dona disse que não era para eu abrir a porta para ninguém, que o marido dela era gerente de banco. Minha nossa, Deus me livre se acontecesse alguma coisa, a culpa ia ser de quem? Da bicha da empregada, claro. Aí fui para um apartamento menor, cheio de câmeras, que era mais seguro", conta.

Junto da faxina, ela catava os reciclados. Coisa que faz até hoje. "Não posso ver um saco, não sei porque as pessoas ainda jogam coisas fora. Hoje em dia se usa tudo. Na minha vila aqui, até roupa rasgada", diz. O bairro onde mora é a Vila Valderez, perto do barracão que ajudou a reerguer.

"Eu vi que a minha realidade não era só minha, mas que tinha muitos iguais a eu, em situações até mais complicadas. No bairro tem um índice enorme de assassinatos, um dia encontrei um amigo meu e ele se interessou em fazer um sopão. Aí lá no barracão, aconteciam os velórios e não dá para fazer comida e velório junto, né? Então quem morria era levado pra sua casa, pra gente dar o que comer pras pessoas", conta.

A história do barracão começou a ser repaginada, segundo Valéria, 10 anos atrás e hoje conta com projetos como "Mesa Brasil", que recolhe verduras e vem doar as mais de 300 famílias da região. "Mas começou assim, um vizinho chama o outro, que chama o outro, que diz que só pode dar um refrigerante, mas o outro já chega com 1 kg de salsicha", exemplifica.

Selfie no ônibus no final de semana retrasado. (Foto: Arquivo Pessoal)
Selfie no ônibus no final de semana retrasado. (Foto: Arquivo Pessoal)

O barracão recebe vários projetos e volta e meia, reformas. Janela, pintura, mas a primeira reforma mesmo veio a partir da rifa de uma égua. "Eu ganhei uma égua, aí rifei para a gente fazer a reforma. Agora estamos arrecadando coisas para o Dia do Glamour, que mulher que não gosta de estar bonita e cheirosa?", brinca.

Quem a vê sorrindo tanto assim, nem imagina a saudade que Valéria sente da filha Fernanda, que aos 14 anos fugiu das ruas, por não aguentar passar fome e frio logo que a mãe saiu da prisão. Assim como também não imagina a gratidão dela à vida e à uma dentista que deu de presente um tratamento.

"Ela arrancou dois dentes meus que estavam forçando a minha face para frente e colocou uma prótese. Agora estou com cara de menininha de 30 anos", ri.

"Por que eu rio tanto? É porque eu já fiquei banguela mais de um ano, mas nunca deixei de sorrir. Deus foi muito bom comigo. É difícil a sociedade te aceitar, eu dei um duro danado pra isso e as madame agora passam quando eu estou varrendo a Marcelino e grita: - Oi Valéria! Menina, cachorro, gato, morador de rua, empresário e madame, tudo me conhece nessa cidade", brinca.

Sobre as selfies que Valéria adora tirar, a gari diz que é porque tem muita coisa a compartilhar. "A vida passa muito rápido, de repente mesmo. Ano passado eu fiquei três meses na cadeira de rodas, bati a moto. Só sobrou motor, mas eu estava inteira. Eu reciclo tudo, coisa da rua e até amizade. E olha, glamour é comigo mesma".

Curta o Lado B no Facebook.

"Por que eu rio tanto? É porque eu já fiquei banguela mais de um ano, mas nunca deixei de sorrir. Deus foi muito bom comigo." (Foto: Eliel Oliveira)
"Por que eu rio tanto? É porque eu já fiquei banguela mais de um ano, mas nunca deixei de sorrir. Deus foi muito bom comigo." (Foto: Eliel Oliveira)
Nos siga no Google Notícias