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Comportamento

Entre cortes de cabelos e décadas de convivência, elas envelheceram juntas

Paula Maciulevicius | 07/08/2014 06:51
Espelho mostra que para elas os anos se passaram através dos cortes e tinturas nos cabelos. (Foto: Marcelo Calazans)
Espelho mostra que para elas os anos se passaram através dos cortes e tinturas nos cabelos. (Foto: Marcelo Calazans)

Entre o lavatório e os secadores, aqueles de pé ainda, o espelho mostra que para elas os anos se passaram através dos cortes e tinturas nos cabelos. As três mulheres sentadas nas cadeiras de salão conversam com uma senhora de óculos e olhinhos puxados num ritmo pautado pela intimidade das décadas de convivência. Entre as funções atribuídas a elas ali, duas são clientes de longa data, uma é ajudante e a japonesa, uma das cabeleireiras mais tradicionais de Campo Grande.

Há cinco décadas, Cândida abria o primeiro salão de beleza ainda na rua Antônio Maria Coelho, entre a 14 e a Calógeras. De lá para cá, 52 anos se passaram em três endereços e com muitas histórias que transformaram mais que um visual, fizeram de suas clientes, verdadeiras amigas.

Hoje na rua 15 de Novembro, o salão tem uma placa já descorada, que anuncia "Cândida Cabeleireira 724-6362", com o extinto prefixo usado na década de 90. O nome Cândida é de batismo, na certidão de nascimento, a senhorinha que não parece de jeito nenhum ter 72 anos, se chama Fumiko Arakaki. "Como é que eu ia colocar Fumiko num salão? Era muito esquisito. Eu falo que, quando eu morrer, ninguém vai saber que eu morri", brinca.

Ainda na ativa e a todo vapor, o Lado B pediu à Cândida que deixasse o salão contar as histórias que guarda entre quatro paredes, tesouras e bobes. De início ela tentou resistir dizendo que não sabia, não se lembraria, mas na mesma hora lamentou "eu devia ter fotografado e registrado todas as noivas que fiz". Na frase ela entrega que a lista de clientes é extensa e que pelas mãos dela, muitas senhoras chegaram ao altar.

A placa já descorada anuncia "Cândida Cabeleireira 724-6362. (Foto: Marcelo Calazans)
A placa já descorada anuncia "Cândida Cabeleireira 724-6362. (Foto: Marcelo Calazans)

Sentadas lado a lado, elas se recordavam desde a primeira ida ao salão, até a constatação de que por mais que não percebessem, o tempo passou para todas. Elas nem se davam conta de que tantos anos já haviam corrido até que a reportagem as fizessem parar para contar.

"Eu comecei na Antônio Maria Coelho, antes da minha gravidez. Minha filha fez 41 anos, para você ver como os anos passam", descreve a advogada Lenita Brum Pereira. A idade, ela não revela. "Eu tinha 15 anos, um cabelão na cintura e queria cortar joãozinho", recorda a também advogada, Maura Virgínia de Castilho, de 61 anos. Maura era vizinha e foi a segunda geração da família a frequentar o salão de Cândida. A mãe dela, de 88 anos, vai até hoje, assim como as netas.

"Eu lembro que o salão, o primeiro, era bem pequeno e vivia lotado. As pessoas sentavam lá fora e tinha um corredor", conta Lenita. Cândida logo emenda numa risada "e quando acabava a luz? Que ficava de bobe e sem nada?" A cabeleireira abriu o salão aos 19, quase para fazer 20 anos, depois de voltar de um curso em São Paulo. Por aqui, ela já havia sido auxiliar de uma cabeleireira chamada Luiza, na Dom Aquino.

As cadeiras que ainda ocupam o salão e servem para quem vai secar os cabelos naqueles antigos secadores 'capacetes', foram feitas pelo cunhado, 40 anos atrás. De início a clientela era a própria vizinhança, Cândida não tinha nem telefone e também não marcava horário. "Ia chegando e eu ia fazendo, encaixando. Tinham muitas mulheres de médicos que começaram a frequentar, na cidade, naquela época, eram poucos os salões", pontua.

O engraçado é que na trajetória paralela entre clientes e cabeleireira, as histórias que ficam também são dos cabelos das décadas passadas. "Cabelo ninho, depois banana, a moda era preso. Aí eu comecei a fazer cascata, que é um cabelo mais trabalhado. Eu desenhava os penteados à noite, não tinha revista. Era da imaginação da gente e todo mundo gostava", narra Cândida.

Dos 52 anos de salão, Cândida teve a ajuda da irmã Norma em boa parte do tempo, fosse de ajudante ou quando o salão dela entrava em reforma, era ali que ia atender. Também entre os anos dedicados às madeixas, é que a cabeleireira conheceu seu braço direito. Dois na verdade. Maria e Dora trabalham há 36 e 28 anos respectivamente. Viram além das clientes, os próprios filhos de Cândida crescerem.

"Eu lembro que a Cândida me ligou para avisar que a Maria não ia mais fazer unha, ia só mexer com cabelo, mas que eu podia ir que eu ia gostar do trabalho dessa. É a Dora que faz minhas unhas desde essa época", recorda a cliente Lenita.

Cadeiras que ocupam o salão servem para quem vai secar os cabelos foram feitas 40 anos atrás. (Foto: Marcelo Calazans)
Cadeiras que ocupam o salão servem para quem vai secar os cabelos foram feitas 40 anos atrás. (Foto: Marcelo Calazans)

A preocupação e confiança que a cabeleireira passou para as clientes fidelizaram elas de um tanto que nem Lenita e nem Maura, assim como tantas outras, pintam o cabelo em outro lugar. "Eu brinco que ela não pode morrer enquanto eu existir", comenta Lenita.

Como amigas de anos, é engraçado que até as frases se completam. "A gente se torna uma família", avalia a cabeleireira. "Minha relação não é de cliente, é de amiga e ela se preocupa quando eu não venho, liga para perguntar se está tudo bem", acrescenta Maura. "Aquilo vira rotina, família e você nem percebe o tempo passar", resume Lenita. Casamentos, aniversários, bodas, mudanças radicais no visual, tantos momentos compartilhados ali, entre escovas e pentes. "Passou muita gente por aqui. Graças a Deus todas me querem bem e eu mais ainda a elas", afirma Cândida.

Por ser uma das mais tradicionais ainda na ativa, Cândida já recebeu telefonemas com notícias tristes do outro lado. Fazer parte da família também tem é chorar a despedida. "Já perdi clientes, amigas boas, pela idade, vou ao velório. Se me avisam? Sempre. A gente tem afeição, afinal é quanto tempo vivendo junto?"

A convivência fez com que a cabeleireira soubesse o que se passa com os clientes pelo olhar, o sorriso ou então a falta dele. "Ela já conhece as nossas dores, são muitos anos conosco então já sabe e pergunta o que foi? Eu digo que ela tem mãos de fada, que até acalma", detalha Maura.

A japonesa nem cogita fechar as portas. "Não dá, as clientes não deixam, enquanto eu tiver as minhas ajudantes. Sabe que me dá remorso? Elas deixaram a família delas por todos esses anos para ficarem juntas comigo", se refere à Dora e Maria.

Apesar de ter atendido às segundas e terceiras gerações, são as clientes mais antigas que permanecessem. Cândida até justifica que é porque depois de crescidas, os novos preferem os salões mais badalados. "Mas todas começaram cortando o cabelo aqui, a franjinha de criança".

Os filhos de Lenita nasceram e foram acostumados no salão de Cândida, já Maura tem como pecularidade o café, ela só toma na casa do irmão e no salão. Juntas, elas são unânimes em dizer que o espaço tem muita história para contar. "Aqui é um lugar que quando eu estou estressada, eu saio daqui outra, me sinto bem e não é só o salão, é o ambiente que ele , levanta e transmite um alto astral", concordam as clientes.

Cândida prefere a modéstia "aqui está todo o sustento, a amizade. Eu senti que estou fazendo a minha parte, é a minha realização profissional e pessoal. Aqui é tudo antigo, eu sou do tepo do onça, mas eu faço um bom corte".

Juntas, elas são unânimes em dizer que o espaço tem muita história para contar. (Foto: Marcelo Calazans)
Juntas, elas são unânimes em dizer que o espaço tem muita história para contar. (Foto: Marcelo Calazans)
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