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Comportamento

Escondidas em roupas de menino, irmãs voltam para casa 1 ano depois de abuso

Paula Maciulevicius | 21/12/2015 06:12
Irmãs voltaram para casa na quinta-feira passada. (Foto: Gerson Walber)
Irmãs voltaram para casa na quinta-feira passada. (Foto: Gerson Walber)

Foi um ano longe de casa, 2 meses no SOS Criança para depois viverem o restante do período num abrigo. Irmãs, elas têm 2 anos de diferença e uma cumplicidade além dos laços sanguíneos. Para sobreviver em casa e depois fora dela elas precisaram se "armar" de uma linguagem própria e se esconder atrás de vestimentas de menino. Abusadas pelo próprio pai, foi a mãe que denunciou o caso e viu as meninas serem levadas. O último ano passou muito devagar para os dois lados da história, unidos por uma só vontade: de voltarem a morar debaixo do mesmo teto.

É o primeiro caso de desacolhimento que o Lado B acompanha. As personagens dessa história não podem ser identificadas, nem mãe e nem filhas. A mais velha tem 16 e a outra, 14. Depois que a mãe denunciou o abuso que elas sofriam, a juíza da Vara da Infância e Juventude, Katy Braun, direcionou as irmãs para o abrigo Casa Meninas e Meninos dos Olhos Deus, especializado em acolher vítimas de abuso, exploração sexual ou tráfico de pessoas.

Na última quinta-feira elas deixaram a casa que chamaram de “sua” durante quase um ano. Nas últimas horas antes de voltar à viver com a mãe, as meninas nem se sentavam. A ansiedade era tamanha que contam até que a noite, foi pra lá de mal dormida.

Detalhes do arquinho da mais velha, borboletas no cabelo. (Foto: Gerson Walber)
Detalhes do arquinho da mais velha, borboletas no cabelo. (Foto: Gerson Walber)
Nas mãos de irmã, está o presente vindo do abrigo, de uma amiga. (Foto: Gerson Walber)
Nas mãos de irmã, está o presente vindo do abrigo, de uma amiga. (Foto: Gerson Walber)

Diretora da casa, Zuleica Marques é quem atende a gente primeiro e quem descreve, em detalhes as mudanças sofridas, dentro e fora das meninas. Quando chegaram ali, as irmãs não se comunicavam por palavras. “Elas só se falavam pelo olhar e uma com a outra”, conta a diretora. Foi preciso terapia e afeto para que elas aceitassem um pouco do carinho dali.

No começo o sentimento era sinônimo de constrangimento. E Zuleica explica o porque. A mãe delas sofre um leve retardo mental e as meninas cresceram sem saber ao certo os limites de carinho, violência, descuido e abuso. Um jogo de palavras que não combina, em nada, com um lar.

A mãe, mesmo com esse nível de retardo, apontado pelo abrigo, conseguiu reagir e denunciou. Num instinto de proteção. E quando isso aconteceu, entraram pela porta duas meninas que pareciam escondidas atrás da vontade de serem o oposto.

“Elas tinham um toquinho de cabelo – nosso trabalho é recebe-las e amá-las independentemente de como elas chegam”, explica Zuleica. De início, abrigo e Juizado pensaram que se tratava de uma questão de identidade de gênero, mas foram notando que não.

“Uma das tendências do abuso é de levar a pessoa abusada a se defender de alguma maneira e muitas se defendem assim. Querendo ser feia, diferente. Elas eram ‘dois meninos’. Se portavam, se vestiam, andavam como meninos”, descreve a diretora.

Se fosse a questão da identidade de gênero, não haveria problema, explicam. No entanto, quando questionadas quem cortou as madeixas, as meninas responderam que foram elas mesmas.

No primeiro instante, a diretora explica que foram trabalhadas nas irmãs a autoestima, resiliência e saber diferenciar o que pode e o que não pode e como se defender. Para ser uma ideia, as duas estavam fora da escola e a mais velha, tinha 12 graus de miopia. Ou seja, precisava de óculos urgentemente.

Elas não chegaram a dizer com todas as letras, como, onde e quantas vezes o abuso aconteceu. O que a diretora conseguiu, através de terapia e tempo, foi saber que os episódios se repetiam há anos. A mais nova não chegou a se abrir da mesma forma que a irmã, o que leva a crer o abrigo que o pai não “consumou” nada. O que não foge, pela lei de hoje, do estupro.

Pingente de lacinho, detalhe de delicadeza da caçula. (Foto: Gerson Walber)
Pingente de lacinho, detalhe de delicadeza da caçula. (Foto: Gerson Walber)
Um ano depois de elas terem deixado o lar, mochilas voltam. (Foto: Gerson Walber)
Um ano depois de elas terem deixado o lar, mochilas voltam. (Foto: Gerson Walber)

Aos poucos as meninas se abriram para o mundo das palavras, para a divisão de espaço com outras crianças e até para deixar os cabelos crescerem.

O caminho para voltar à casa foi de imediato, tomado pela mãe que lutou, foi atrás e entregou até a estabilidade financeira, razão pela qual inúmeras mulheres por aí suportam a violência, a fim de poder ter as filhas de volta. Ao mesmo tempo em que as irmãs foram acolhidas ali, abrigo e Juizado começara também a acolher a família com entrevistas com psicólogos e assistentes sociais.

Em cima da principal necessidade da mãe, de sair de perto do pai e mais uma sequência de visitas e acompanhamentos, a volta começou a ser trilhada e aí que chegamos à última quinta-feira. Um recomeço para todas.

“Diante de todo esse trabalho com a família a gente viu que a mãe se preocupava com as meninas e as queria de volta, o que é um ponto primordial. Ela perguntava o que poderia fazer para mudar e seguiu as orientações”, explica Zuleica.

Às vésperas de voltar para a casa, as meninas já estão bem mais soltas do que quando ali colocaram os pezinhos pela primeira vez. Antes timidez, agora nervosismo. E aos risos, confessam isso.

A mais velha adora Ciências, a caçula divide a paixão com o Português, mas acima disso, as meninas sonham em serem médicas veterinárias. Por gostarem muito de bichinhos, a primeira coisa que lhes vêm à cabeça é se o cachorro continua lá.

Os cabelos crescendo aparece mais nas roupas coloridas, apesar das meninas gostarem muito de saia e shorts, vestiam jeans para voltar pra casa. Em sacolas, sacos e mochilas, estavam poucos pertences e o material escolar. O que não cabia nelas era o sorriso de felicidade, de voltar para casa e para a mãe.

O endereço da casa nova era surpresa e a primeira coisa que elas fariam: abraçar e mãe e conversar com o irmão mais velho. “Falar que eu estava com saudades...” diz a mais velha.

Sobre o que mais sentiram falta este tempo todo está a casa própria e a mãe. “A gente acordava e ela não estava lá...” Apesar de toda tristeza passada ali, as meninas não se comovem ao lembrar passado e nem nos minutos antes de embarcar no carro.

A caçula conta que o que mais gosta de fazer era ouvir música, em especial, uma de Regis Danese, que pede a Deus para abençoar a família. A menina não canta, apenas resume a mensagem da canção e diz que era o que pedia todas as noites. Resposta de partir o coração.

A mãe vive de uma pequena aposentadoria e tem consciência do que era o abrigo bater à porta naquela tarde. A casa simples no bairro oposto onde elas moravam antes estava limpinha, seguindo as orientações do abrigo. Agora faltam móveis para mobiliar, como guarda-roupa para as meninas, geladeira e um computador.

O abrigo e o Juizado continuam o acompanhamento intenso por seis meses. As meninas entendem que é preciso cuidar da mãe e a gente percebe isso quando elas posicionam a senhora de costas, para ela entender quase num desenho, que para a fotografia não podia lhe aparecer o rosto.

Voltar pra casa, num vocabulário de quem tem tanto a sentir e tão pouco falado, as três resumem que agora é só felicidade.

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De frente, Zuleica, a diretora do abrigo. De costas, as irmãs, mãe e o irmão de volta ao lar. (Foto: Gerson Walber)
De frente, Zuleica, a diretora do abrigo. De costas, as irmãs, mãe e o irmão de volta ao lar. (Foto: Gerson Walber)
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