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Comportamento

Escrava a vida toda, vó que nasceu para ser feliz encontrou liberdade nos netos

Paula Maciulevicius | 10/05/2016 06:05
O sorriso nunca faltou à dona Benedita, mesmo diante de tanta crueldade da vida. (Foto: Alcides Neto)
O sorriso nunca faltou à dona Benedita, mesmo diante de tanta crueldade da vida. (Foto: Alcides Neto)

Dona Benedita nasceu para ser feliz e disposta a desafiar o que lhe ousasse tirar o riso, disso, ninguém duvida. Aos 83 anos, a senhorinha conta que a liberdade na qual foi criada só se encontrou com ela de novo quando os netos se tornaram adultos. Ao se apresentar, Benedita diz que é a primeira neta de mineiros nascida aqui. Criada às margens do Rio Taquari, em Coxim, a vida não lhe poupou da crueldade, da escravidão branca, mas ela escolheu reagir com sutilezas.

O corpo mirradinho, que não deve medir mais de 1,55m de altura, e a magreza só parecem transmitir uma fragilidade, mas que ali nunca habitou. Vó Benedita foi escrava da vida. E a hora que a alforria chegou, foi a saúde que se ausentou. 

"Eu nasci para ser feliz, só que a vida me podou", conta Benedita de Freitas Fluhr. Aos 3 anos deixou a cidade de Coxim num carro de boi, com a família para se aventurar no Estado de Goiás. A saudade dos pais fez com que a mãe retornasse. O casamento não durou muito e quando os pais se separaram, ela se separou dos irmãos e veio parar em Campo Grande, numa casa de família, de 12 para 13 anos. 

Vó Benedita foi escrava da vida. E a hora que a alforria chegou, foi a saúde que se ausentou. (Foto: Alcides Neto)
Vó Benedita foi escrava da vida. E a hora que a alforria chegou, foi a saúde que se ausentou. (Foto: Alcides Neto)

Típico para a época - nos anos 40 - Benedita foi batizada pelos patrões a quem chamava de padrinhos e criada com um certo "carinho de filha", mas na labuta como empregada doméstica. O descanso era na agulha ajudando a madrinha costureira. Para esquecer a mãe, foram dias apanhando. A dona da casa lhe bateu até o dia em que ela respondeu que não, não queria voltar para a mãe. "Foi ali que morreu o amor pela minha mãe", na marra, conta.

"Eu fui criada na liberdade, me criei no mato, onde nunca encontrei uma cobra e nunca quebrei uma perna. Era como filho de índio, que o pai nunca fala não. Aí eu vim para uma casa toda murada e enlouqueci. Era a mesma coisa que se eu ficasse numa prisão", descreve a senhorinha a primeira lembrança de 60 anos atrás.  

Sem nunca ter estudado, foi na casa dos padrinhos que ela aprendeu a ler e também só isso. De resto, foi tudo aprendido por ser autodidata. "Eu vim parar na casa deles até o dia em que me casei. O que sei, aprendi sozinha, lendo", lembra. As letras se transformaram em palavras quando ela fez 13 anos e desde então, o que lhe caísse nas mãos se transformava na melhor leitura do mundo.

Aos finais de semana, ela até seguia com os patrões para os almoços na casa de familiares, "bem vestida" como Benedita mesmo descreve e caminhava ao lado da madrinha e da irmã de criação pelo trecho interditado na 14 de Julho. Foi ali que conheceu o esposo, alemão dos mais bravos e sistemáticos.

A escravidão só mudou de endereço. Foram 63 anos debaixo de uma ditadura, onde Benedita só conhecia seu quintal. "Se ele era uma boa pessoa?" - um tímido riso se abre como quem procura as palavras para descrevê-lo. "Ele me prendia demais. Eu era uma espécie de escrava da família dele. Eu trabalhei demais na vida, mas nunca me queixei disso não. Fui mais mal tratada por ele do que por aqueles que me criaram. Era pior que uma escrava", desabafa.

A liberdade apareceu ao lado dos netos.
A liberdade apareceu ao lado dos netos.
Quando ela começou a viajar para longe.
Quando ela começou a viajar para longe.
Ou tê-los por perto em passeios.
Ou tê-los por perto em passeios.
E até mesmo em casa, na mesa de almoço.
E até mesmo em casa, na mesa de almoço.

Quando fez 70 anos, dona Benedita - ainda com o marido - passou a voar com os netos. A criançada que se resume a quatro netos enfim cresceu e pode levar a avó para conhecer o caminho de volta à liberdade pela mão. "Meus netos cresceram e me deram todo apoio. Eu viajei, viajei muito. Fui para o Rio de Janeiro, conheci os palácios, Niterói, Petrópolis, Brasília. Sabe tudo aquilo que a gente vê na TV? Eu já fui lá", comemora.

Por anos, o marido debilitado lhe impediu de realizar esses pequenos grandes sonhos. O alemão morreu faz dois anos, com um fim muito triste. "Amarrado, internado e no isolamento sozinho, porque ele se alimentava pelo nariz, mas ficava arrancando, então tinha que ficar amarrado e morreu assim: amarrado. Não guardo mágoa nenhuma porque eu vi esse fim dele, foi triste demais", perdoa a mulher.

O dia em que a liberdade chegou, a saúde acabou. Dona Benedita se queixa de dores na coluna, anda com um pouquinho de dificuldade e tem problemas de pressão. Viajar acabou sendo - nos últimos tempos - apenas na memória.

O engraçado é que apesar de tudo a fala é mansa e um beijo de vó parece me encontrar a testa a cada palavra de uma triste história. "Amarga? Não, não sou não. Eu tenho paz e perdoo tudo o que me fizeram, de coração. Eu tenho uma família bonita, até com dois bisnetos e eu tenho paz. Deito e durmo igual a um anjo", declara.

O amor - sentimento que apesar de irradiar no peito ela mesma nunca encontrou - é para Benedita definido em duas palavras: afinidade e cumplicidade. Amar ela foi amar nos netos, na vida dos netos.

"São quatro, cada um melhor que o outro. Eles têm o mesmo nível do povo que meu pai era peão no passado. Olha só o que Deus me deu? Não é para agradecer? Tudo na vida é perseverar. Agora eu quero ir embora, já vivi tudo o que tinha de viver dos meus 70 anos para cá. Não preciso de mais nada, se despede a senhorinha.

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Amar ela foi amar nos netos, na vida dos netos. (Foto: Alcides Neto)
Amar ela foi amar nos netos, na vida dos netos. (Foto: Alcides Neto)
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