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Comportamento

Favela está "acordando" e quando isso acontecer a cidade inteira vai ouvir

Vania Galceran | 18/01/2015 07:44
A inocência da infância registrada com delicadeza e verdade. (Foto: Alcides Neto)
A inocência da infância registrada com delicadeza e verdade. (Foto: Alcides Neto)

Passo boa parte do meu tempo livre observando algumas regiões de Campo Grande e a Cidade de Deus, em especial, chamou minha atenção. Me assombra essa "falação" sobre o lugar. É como se a favela, que fica perto do lixão, no bairro Dom Antônio Barbosa, fosse novidade. É como se o local tivesse surgido agora, em um passe de mágica.

Fico pensativa quando alguém age como se a região fosse o fim do mundo, o modelo de deficiência ou a referência para o "apobreamento" do país. O bairro é pobre sim. Chega a ser um retrato do descaso, da falta de atenção política. As pessoas que vivem lá passam por dificuldades.

Contudo, ao contrário do que muitos imaginam, o sol não gira em torno favela, onde nem sempre tem almoço. A vida dessas pessoas não se resume a carência, desencontro, infelicidade e tristeza. Na concepção de um colega, que conversei dia desses, os jovens da Cidade de Deus estariam sendo desrespeitados no seu direito de viver tudo o quanto teriam direito. Cidadania, diversão, brincadeiras, respeito.

Vendo as estatísticas de assassinatos de jovens na periferia, eu diria, em primeiro lugar, que essa molecada está sendo desrespeitada é no seu direito de viver e ponto. Imagens feitas pelo meu colega Alcides Neto, fotógrafo do Campo Grande News, retratam de maneira sublime o que eu tento expressar aqui.

Além de ficar irritada com gente que acha o "fim do mundo" a região, tenho paúra no estômago quando ouço alguém dizer que esses jovens precisam ir para o Centro e bairros nobres como Jardim dos Estados, São Bento e afins para terem acesso à diversão e à cultura. Trabalhos voluntários que já existem no local, mostram que isso não precisa ser assim.

Não raro, também escuto: "esse povo precisa de um banho de cultura”. Na opinião destes, da “cultura certa”. É elitista e preconceituosa declaração assim. Esse tipo de pensamento, com símbolos para separar “nós” da plebe, expressa mais preconceito de classe do que qualquer outra coisa. Parece que até que estão querendo catequizar pessoas humildes. Francamente.

Vida rica em arte e poesia - Sem apoio de ninguém e, muitas vezes ignorados pela indústria cultural, eles produzem uma vida rica em arte e em poesia. A inspiração "brota" da adversidade. A diferença entre o popular e o erudito é apenas parte dessa discussão.

Banho gelado pra espantar as indelicadezas da vida. (foto: Alcides Neto)
Banho gelado pra espantar as indelicadezas da vida. (foto: Alcides Neto)
Brinco, vivo, fato, jeito, sonho, sou criança. (Foto: Alcides Neto)
Brinco, vivo, fato, jeito, sonho, sou criança. (Foto: Alcides Neto)

Nos grandes Centros, favelas ganharam espaço entre os mais ricos e formadores de opinião. Virou ponto cult. Se fosse em São Paulo ou Rio, iriam tocar rap e funk. Aqui, na contramão da política, toca-se sertanejo. E daí?

Mas tocam Anita e, também, os novos MCs da vida. Qual o problema?? Bonito é sempre tocar Chico e Caetano? Como? A comunidade Cidade de Deus sofre para conhecer as letras, o A-B-C e o A-E-I-O-U. Dá para alguém aí do outro lado acordar?

O mundo que pipoca longe do Centro da cidade não deixa nada a desejar. A não ser pelo fato de que, na prática, um garoto ou uma moça, ricos, podem ficar até altas horas da noite bebendo de forma segura. Enquanto que, na periferia, há o risco do "mano" ou da "mina" morrerem baleados ou em uma chacina.

“Ah, mas ouvi que a prima de uma amiga foi assaltada em um arrastão na semana retrasada em um restaurante caro na Afonso Pena. Eu também estou em risco”. O palavrão que tenho vontade de gritar ao ouvir uma "titica" como essa, usada para tentar justificar que os mais ricos também seriam vítimas do mesmo genocídio de jovens pretos e pobres da periferia, não seria publicável.

Inspiração "brota" da adversidade. (Foto: Alcides Neto)
Inspiração "brota" da adversidade. (Foto: Alcides Neto)

É fundamental que os moradores tenham livre acesso à toda cidade e às trocas possíveis de serem realizadas entre diferentes jeitos de viver e modos de pensar. Contudo, mais importante que isso, é garantir que esses jovens tenham acesso, em primeiro lugar, às suas próprias comunidades, onde eles podem se divertir, produzir música, poesia, sem o risco de levar uma “bala perdida” na nuca ou de ser arrastado pela enchente.

Mas, ao invés disso, com medo da “violência que brota da periferia”, decretamos uma espécie de "toque de recolher", onde jovens pobres são obrigados a ficarem dentro de suas casas, sob o risco de serem mortos por traficantes ou pela disputa de todos contra todos.

Hoje, a região vive um luto. A pobreza anda matando. Desfavelamento virou mito, circo, lenda. Mas a favela está acordando. E quando isso acontecer, a cidade inteira vai ouvir.

* Vânia Galceran é jornalista.

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