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Comportamento

Há décadas no Asilo São João Bosco, freira viu o pior e o melhor do ser humano

Paula Maciulevicius | 30/12/2013 06:55
Cabelos branquinhos, ralos, mas aparência serena. Um sorriso e um olhar que demonstram amor ao que faz há 21 anos no asilo São João Bosco. (Fotos: Marcos Ermínio)
Cabelos branquinhos, ralos, mas aparência serena. Um sorriso e um olhar que demonstram amor ao que faz há 21 anos no asilo São João Bosco. (Fotos: Marcos Ermínio)

Ainda cedo ela descobriu qual era sua vocação. Seguiu o chamado de Deus, saiu de casa com a roupa do corpo e duas vassouras para vender na rua em troca da passagem de ônibus para o convento. O primeiro a lhe estender a mão foi o motorista, que não cobrou pelo transporte e a deixou aos cuidados do tio, um padre da mesma cidade dela, Curitiba. “Entrego e vejo o que ele pode fazer com você”. À época, menina de tudo, a irmã ainda era Maria Magdalena Costa e tinha 10 anos.

Hoje, como irmã Fausta Passionista, ela tem 84 de idade, 64 de vida de freira e está há uma semana de completar 22 anos de asilo São João Bosco, em Campo Grande. O Lado B foi conversar com ela, saber o que a freira que convive com o melhor e o pior do ser humano, carrega no coração.

Cabelos branquinhos, ralos, mas aparência serena. Um sorriso e um olhar que demonstram amor. A fala é devagar. Ainda tenho dúvidas se as palavras pausadas são dela mesmo, ou para que eu anotasse tudo certinho.

“Desde pequena queria ser freira. Tenho tias, mas não é por causa delas, é um chamado. A vocação é um mistério tanto quanto o casamento, a consagração da vida religiosa também é e a gente é chamada por Deus para atender as pessoas”, explica.

De Curitiba ela terminou o primário, entrou para o convento e não arredou o pé, mesmo com a mãe indo busca-la por duas vezes. Na trajetória da vida religiosa, passou por cidades do Estado de São Paulo, voltou à Curitiba e chegou ao Sertão do Goiás, a última parada antes de Campo Grande, onde ficou por 10 anos como vigária na paróquia onde o padre ia à cidade uma vez por mês.

A vinda para a Capital era para substituição de outra freira, só por um mês.
A vinda para a Capital era para substituição de outra freira, só por um mês.

A vinda para a Capital era para substituição de uma outra irmã e só duraria um mês. “Mas neste um mês, estou aqui há 21 anos”, diz. Em janeiro, agora, já serão 22 anos de dedicação aos idosos do asilo São João Bosco. Aqui foram 10 anos como diretora, entre demais funções que a irmã ocupou. “Mas o trabalho principal é cuidar e ter a vida espiritual com Deus e os idosos”, complementa.

Num cenário de jardins, bancos e onde reina a serenidade. Não se fala alto, mas ainda se ri, se conversa, se brinca. Os corredores exalam o sentimento de abandono. Seja vindo dos familiares ou do próprio destino. As centenas de velhinhos que ali já viveram ou vivem hoje, escancararam aos olhos dela o que há de pior e de melhor neste mundo. Dois contrapontos. O abandono e a adoção. O descaso e a atenção. O desprezo e o acolhimento.

“Muitas famílias não têm condições de cuidar dos vozinhos e eles ficariam abandonados, mas não ficam porque a comunidade de Campo Grande é muito boa, sempre tem visita”, narra.

A descrição do capítulo de quem chega com amor para um lugar onde os sentimentos estão guardados num passado, é a seguinte: “quando tem visitas, muitos até choram porque se lembram dos netos e eles sentem saudades dos familiares. Aqui pode vestir de ouro, mas não é como a família. A família é tudo”.

Mas quem habita há tantos anos um recanto de idosos também vive momentos de solidão. “Se para mim a sua visita já é a minha maior satisfação, alegria, me levantou o astral, imagina para os idosos?” indaga. Pois é de se imaginar mesmo. Mesmo vivendo anos ali, sabe que nas histórias de quem chega, o abandono às vezes foi protagonizado por quem amarga do sentimento hoje. “O vozinho conta a saudade da família, apesar de que alguns têm culpa por terem abandonado a família”.

No dicionário do asilo tem mais palavras além dessas de melancolia. São João Bosco, nome que o recanto leva, também permitiu que eles se recordassem dos reencontros. “Tem uma história, entre muitas tristes, de um senhorzinho que não me lembro o nome dele. Foi até eu que o acolhi, mas ele ficou mais de 40 anos sem ver a família. Ele tinha duas filhas e trabalhava numa fazenda, quando ele não pode mais trabalhar, o dono da fazenda mandou ele embora, as filhas depois fugiram da fazenda, uma foi para Brasília e a outra para o Rio de Janeiro. Um dia, elas viram ele na televisão e telefonaram para cá. Pensa a emoção? Eu disse sim, ele está aqui sim. Elas vieram aqui e foi uma choradeira só”, descreve a irmã.

Elas levaram o pai, cuidaram dele, até que a irmã Fausta nunca mais soube notícias, mas completa “ele era um pai trabalhador, era ele quem fazia a limpeza dos pátios”.

No meio da conversa, ela surge com a ideia que classifica como “interessante”. “E se a gente conseguisse quem quisesse adotar um velhinho? Para que, de vez em quando, a família levasse ele para almoçar em casa, dar uma volta pela cidade, não ia ser interessante?” Também achei.

Por fim, Fausta diz que tem muita coisa ruim, mas tem muita coisa boa também. Depende do olhar, é como o copo, meio vazio, meio cheio. “Eu sou apaixonada pelo meu trabalho. Aqui você aprende muito a amar o próximo. O amor supre tudo, é a maior cosia da vida, amar acima de si próprio, aquele que está do meu lado também”.

Pergunto se aos 84 anos, morando num asilo, ela tem sonhos ainda a realizar. E tem, muitos. “Principalmente uma vida de santidade mais perfeita. E não me arrependi da vida de freira, graças a Deus. Tive muito sofrimento, mas nunca me arrependi. O sofrimento e o amor tem que andar juntos”.

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