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Comportamento

Na delegacia, depois do abandono, brincar vira coisa séria

Paula Maciulevicius | 30/01/2013 15:37
Seja pelo colorido ou simplesmente por ter com o que brincar, é na delegacia que eles finalmente sorriem. (Foto: Rodrigo Pazinato)
Seja pelo colorido ou simplesmente por ter com o que brincar, é na delegacia que eles finalmente sorriem. (Foto: Rodrigo Pazinato)

Ao entrar na sala, os olhos brilham. No chão, um tapete com almofadas e na estante o que parece ser reluzente: prateleiras repletas de brinquedos. De cachorro, sapo a urso de pelúcia, bonecas, carrinhos, peças de montar e até uma barraca. Seja pelo colorido ou simplesmente por ter com o que brincar, é ali que eles finalmente sorriem. A alegria em meio a uma situação de abandono, violência ou abuso está naquela sala.

O ambiente não é nada convidativo, principalmente para elas que são vítimas, muitas vezes dos próprios familiares. Os pequenos chegam ali indefesos e precisam relatar o drama a que foram submetidos. Aqueles mesmos olhinhos que brilham pelos brinquedos, viram repetidas cenas de violência, a viatura da PM chegar, os flashes das câmeras fotográficas e acabaram tendo de relembrar tudo aquilo entre quatro paredes, em uma delegacia.

“Naquela situação eles ficaram na minha sala e me relataram que ele não têm brinquedos”. Quem conta é a psicóloga Carlota Philippsen, 33 anos, da Depca (Delegacia Especializada na Proteção da Criança e ao Adolescente).

Ela quem montou há cinco meses uma brinquedoteca na própria sala. Tem sorriso calmo e um estilo que destoa dos padrões burocráticos de uma delegacia. É alegre, com o cabelo vermelho e tatuagens, uma surpresa boa na recepção para quem já não deve ver muita graça no cotidiano.

Uma das crianças abandonada pela mãe nas Moreninhas brincou com um brinquedo pela primeira vez na delegacia e não em casa. (Foto: Simão Nogueira)
Uma das crianças abandonada pela mãe nas Moreninhas brincou com um brinquedo pela primeira vez na delegacia e não em casa. (Foto: Simão Nogueira)

O relato que ela ouviu foi dos irmãos de 4 e 7 anos que foram encontrados na segunda-feira abandonados pela mãe, nas Moreninhas. Para a Polícia, os brinquedos servem como ferramentas para saber de um modo menos formal, a rotina em que a criança vive. Para eles, são muitas vezes aquilo que só viam pela televisão.

“Tem várias crianças que nunca brincaram. Às vezes não é nem da condição financeira da família, é por descaso, relaxo dos pais”.

Quando Carlota assumiu como psicóloga na delegacia, soube de uma sala cheia de brinquedos que são doados pela Receita Federal e que teria a oportunidade de montar um espaço para as crianças.

“Toda criança que sai daqui leva um brinquedo quando vai embora. Muitas vezes elas veem a delegacia como um ambiente assustador. Se não fossem os brinquedos na segunda, eles pediam pela mãe o tempo todo”, conta sobre os dois irmãos do caso das Moreninhas.

Na recepção, uma pequenina que não tem nem 2 anos ainda estava inquieta. Mesmo com bonecos na entrada, como se não houvesse nada ali que prendesse a atenção da menina. Já na sala, ainda que timidamente, ela chegou e passou a brincar.

A reação foi de ficar paradinha, a espera da autorização de onde e no que poderia tocar. Dado aval pela psicóloga, ela relutou, sem saber para onde ia. Era pela quantidade de brinquedos espalhados entre o chão e a estante.

Psicóloga Carlota Philippsen montou o espaço com brinquedos para as crianças. (Foto: Simão Nogueira)
Psicóloga Carlota Philippsen montou o espaço com brinquedos para as crianças. (Foto: Simão Nogueira)

“Tem criança que você vê a agressividade porque quebra o brinquedo. Mas tem criança que ajuda a organizar, deixa até mais arrumado”, comenta Carlota. Era o caso da nossa pequena personagem que aguardava enquanto a família registrava o boletim de ocorrência.

“A gente trabalha na pedagogia e na psicologia que brincar é coisa séria. Os brinquedos são muito importantes para o desenvolvimento. A criança coloca na boneca como ela vê as coisas, no boneco ela vai experimentar ser um super-heroi”.

No caso das crianças das Moreninhas, o inocente relato de que nunca tiveram brinquedos chega até a emocionar. Na região, os vizinhos contam que eles viviam pelas ruas. Para os meninos de 4 e 7 anos, o brinquedo eram eles mesmos, que tinham que ter a responsabilidade de um adulto para com o irmão de cinco meses.

“Eles não têm a possibilidade de experimentar o que é ser criança. A situação em que eles vivem não permite que eles façam isso”, observa a psicóloga.

Ferramenta para a Polícia, distração para os pequenos, ou a alegria de brincar pela primeira vez. A sala é o alento para quem vive na seriedade a falta de muito mais do que brinquedos, o drama de ser protegido pela Polícia de quem mais devia os proteger.

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