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Comportamento

Netos descobrem o amor correspondido em cartas pelos avós na 2ª Guerra

Paula Maciulevicius | 29/01/2015 06:12
“Dileta Alice... Do seu Iron”, assim começavam e terminavam as cartas de amor entre Alice e Iron. (Foto: Marcos Ermínio)
“Dileta Alice... Do seu Iron”, assim começavam e terminavam as cartas de amor entre Alice e Iron. (Foto: Marcos Ermínio)

“Dileta Alice. Abraços em ti e nos filhos. Paz, saúde e prosperidade é o que desejo a ti juntamente dos nossos filhinhos... Do seu Iron”.

“Peço a Deus para que essa carta te encontre com saúde. Nós vamos bem, graças a Deus. Só com muitas saudades. Os meninos estão fortes, o Antoninho está gordinho que só um porco. Beijos e abraços, da sua Alice.” 

Em 40 cartas, 19 postais e oito telegramas, o amor de Alice e Iron em plena Segunda Guerra Mundial é revelado pela caligrafia das palavras. O carinho, o afeto, a saudade e a distância pautam cada relato trocado. Os registros, feitos a mão em caneta ou até mesmo lápis em papel manteiga tem mais de 70 anos e entre Itália e Campo Grande, mostram hoje quem os avós eram aos netos. 

“Essa história pouca gente tem em Mato Grosso do Sul. Hoje mesmo, se não me engano, que foi e voltou da guerra, uma meia dúzia...”, imagina o aposentado Jamir Gomes da Silva, 73 anos, filho de Iron.

Filho Jamir e neta Evelin contam e conhecem a história deles pelas cartas. (Foto: Marcos Ermínio)
Filho Jamir e neta Evelin contam e conhecem a história deles pelas cartas. (Foto: Marcos Ermínio)

As cartas chegaram na mão da neta Evelin Gomes da Silva, de 31 anos, porque a família sabia do interesse dela por histórias, ainda mais sendo dos avós. Jornalista, foi na mudança de uma das tias que a caixinha de sapatos foi levada pela mãe.

“Como eu estava em São Paulo, minha mãe guardou para mim, a família inteira sabe do meu interesse em escrever, contando a história de outras pessoas”, explica.

Quando a jovem chegou em Dourados foi olhar carta por carta minuciosamente. Separou por datas e o que imagina que tenham sido as respostas numa sequência de quem vivia a espera de notícias.

“É de 1944 a 1945, do período em que meu avô ficou na guerra. Sou uma das últimas netas. Todo militar é fechado e eu tive uma proximidade mais com o meu avô por conta das cartas. Ele é muito carinhoso com a minha avó”, descreve. A avó Alice era mais aberta, só que morreu muito cedo.

“Da minha avó, as cartas são extremamente simples, até pelo nível de estudo dela”, justifica a neta. A letra não é tão bela quanto do avô, mas a escolha de palavras mostra a saudade e o receio de que a sua carta não o encontrasse com saúde.

As correspondências nos fazem viajar no tempo e imaginar Iron chegando em casa e dando um beijo na esposa, sendo cuidadoso na educação das crianças. Foi de longe que ele fez tudo isso, através de cartas da Itália para Campo Grande, mais precisamente na rua Iguassu, no bairro Amambaí.

Nos textos, os dois falam de saudade, perguntam se estão se alimentando bem. Ele quer saber das crianças, ela quer rogar a Deus que voltem a ficar juntos o quanto antes. Os escritos todos passavam pela censura militar quando saíam e também chegavam lá.

Aprendendo a língua, Iron escreveu trecho de música para a amada. (Foto: Marcos Ermínio)
Aprendendo a língua, Iron escreveu trecho de música para a amada. (Foto: Marcos Ermínio)
À esquerda, Iron, na Itália, ao lado de outro combatente. (Foto: Marcos Ermínio)
À esquerda, Iron, na Itália, ao lado de outro combatente. (Foto: Marcos Ermínio)

Iron era sargento e foi para a guerra trabalhar no administrativo. A família conta que ele chegou a pedir para ir na linha de frente e teve o pedido negado. Em uma carta específica, sem data, ele manda mais que notícias: orientações que Alice deveria seguir caso acontecesse a ele alguma coisa. A escolha de palavras mostra o momento de tensão que Iron estava vivendo e o receio de não voltar para casa com vida.

“Alice, durante a minha ausência deveis assumir a direção da casa e providenciar dentre outras cousas, as seguintes:

Primeiro: educar nossos filhos, fazendo eles verem a diferença entre o certo e o errado e nunca empregar a força. Ser paciente com eles, mas nunca desleixada. Insistir em fazê-los compreender os erros, uma, duas, três, quatro ou mais vezes. Tratar nossos filhos com o máximo de cuidado.

Ser tolerante com os demais e nunca falar antes de pensar e avaliar quanto ao efeito que poderá produzir. Incutir neles, nos filhos, como deverão proceder na nossa falta, isso quando tiverem compreensão e fazê-los ver que união faz a força e desunião faz tudo quanto é de ruim.

Quando se sentir ofendida com uma pessoa, procure evitá-la e não maltratá-la, mas não deixando, entretanto de fazer essa pessoa ver o erro que está cometendo;

Os livros servirão para orientar nossos filhos e estão na cômoda. Os papeis que te interessam também estão na cômoda, caixa velha, gaveta, guarda-roupa.

Não guardar rancor e nem desejai mal a ninguém, mesmo que alguém lhe faça mal.

O que pode ser feito hoje, não deixa-lo para amanhã, com exceção de certos causos. Também não fazer precipitação.

Alice, este é um pequeno lembrete e não vá se ofender com isso. Porque é um conselho seja por quem dado, vale mais que sem. Iron”.

Envelope pedia que as orientações fossem lidas por Alice sozinha. (Foto: Marcos Ermínio)
Envelope pedia que as orientações fossem lidas por Alice sozinha. (Foto: Marcos Ermínio)

Como o conteúdo da carta pesava mais que a saudade, vinha acompanhado de uma certa preocupação, a família imagina que as folhas tenham vindo um envelope que pedia para que Alice abrisse e lesse sozinha. O único assim.

“Quando meu avô foi para a guerra, tinha acabado de nascer um filho. Ele ficou muito feliz em saber que a minha avó levou o tio Toninho para batizar. Como ele era extremamente rígido com os filhos, a gente percebe o carinho que tinha era demais com a minha avó”, narra Evelin.

Em uma das cartas, uma música em italiano demonstra todo esse amor. “Acho que ele estava aprendendo a língua e mandou para ela e foi traduzindo, olha que bonitinho”.

A letrinha, o jeitinho de Alice falar era diferente, mas vinha sempre acompanhado de uma assinatura carinhosa. “Peço a Deus para que essa carta te encontre com saúde. Nós vamos bem, graças a Deus. Só com muitas saudades. Os meninos estão fortes, o Antoninho está gordinho que só um porco... Temos fé em nosso bondoso Deus que em breve nós estaremos juntos novamente. Beijos e abraços da sua Alice”.

Jamir lembra exatamente da responsabilidade que coube à sua mãe. “Ele estava indo para a guerra, não sabia se ia voltar. Foi um passo que ele deu muito grande de confiar as crianças à ela. Eu me lembro exatamente da passagem quando ele voltou. Não lembro da ida, porque minha mãe não deve ter deixado a gente ver. Estava cheio de gente em casa e ele desceu daquele QT, aquele caminhão do exército com um saco de roupa e lembro que ele trouxe uma mala grande cheia de bombons”.

Iron, Alice e todos os filhos depois da guerra. (Foto: Reprodução/Marcos Ermínio)
Iron, Alice e todos os filhos depois da guerra. (Foto: Reprodução/Marcos Ermínio)

A última carta de Alice para Iron é de 21 julho de 1945. A resposta dele data 25 de setembro. Entre o fim do ano e o início de 46, que Iron retornou à casa.

Iron morreu em novembro de 2000, por conta de um edema agudo no pulmão. Ao Lado B, a neta que mais conviveu com ele e foi criada pelo avô como filha, Analice da Silva de Rezende de Moraes, de 34 anos, escreve de Santo Ângelo, no Rio Grande do Sul:

“Meu querido e amado avô Iron era um homem de coragem, leal, honesto e muito bondoso com o próximo. Era justo o bastante para punir as coisas erradas, mas sempre mostrava e ensinar o certo a seus filhos, netos e familiares que conviviam com ele.

Um fato que não sai da minha memória, que minha mãe conta desde que sou bem pequena, é que ele deixou seus 3 filhos e sua esposa com um bebê de 10 dias de nascido, para cumprir seu dever de servir a Pátria, caminho esse que tinha traçado para sua vida profissional na carreira militar. A falta dele pra mim é muito forte e real ainda, apesar de ter passado quase 15 anos de sua partida. Para todos nós ele foi um verdadeiro herói”.

Sinal de que Alice cumpriu com as orientações daquela carta no dia a dia.

Iron morreu major e 15 anos depois é que as cartas revelaram um pouco mais do avô ainda sargento na guerra. Das correspondências, Evelin quer fazer um livro. “Quando eu descobri quem meu avô era nas cartas, fiquei encantada. Eu acredito que ele não foi uma pessoa qualquer. O carinho que eles tinham estava nos detalhes”, discorre.

Uma das últimas cartas trocadas entre o casal, em 1945. (Foto: Marcos Ermínio)
Uma das últimas cartas trocadas entre o casal, em 1945. (Foto: Marcos Ermínio)
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