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Comportamento

O dia em que se enxerga no espelho invertido a colega de escola num barraco

Paula Maciulevicius | 06/07/2013 07:20
Ela é só uma das dezenas de mulheres que só querem uma casa para morar, e se propõe a pagar por isso. (Fotos: Marcos Ermínio)
Ela é só uma das dezenas de mulheres que só querem uma casa para morar, e se propõe a pagar por isso. (Fotos: Marcos Ermínio)

Batendo perna no bairro Dom Antônio Barbosa. Cidade de Deus, casas improvisadas, famílias, incluindo muitas crianças, que vivem sem as mínimas condições, margeadas pelo lixão de Campo Grande. Basta por os pés ali que as pautas gritam aos olhos. Era só mais uma quinta-feira em que a cabeça estava fraca de ideias. Aquele dia em que o repórter torce o nariz para qualquer sugestão, esteja ela pronta ou não.

Geralmente o primeiro contato com a Cidade de Deus é durante alguma reintegração de posse na região, que já é marcada por inúmeros barracos montados por famílias que buscam casas de programas de governo para morar. A cena que sempre chama atenção são os brinquedos em meio a terra e as crianças, que às vezes, na falta de ter com o que brincar, inventam a própria diversão, que pode ser notada de longe. A terra vermelha sempre está dos pés à cabeça dos baixinhos. Mas uma coisa é certa, nunca se pisa lá para não ver os olhos deles brilhando.

Por costume de estar disponível para qualquer pauta, de chuva à desocupação e doações em datas comemorativas, boa parte de moradores que vieram e foram embora dali tinham ou tem algum celular de jornalista.

A pequena Bê foi quem recebeu a equipe. O olhar na foto é difícil de descrever. As marcas de terra são fruto da brincadeira onde criança nenhuma deveria morar.
A pequena Bê foi quem recebeu a equipe. O olhar na foto é difícil de descrever. As marcas de terra são fruto da brincadeira onde criança nenhuma deveria morar.

No final da manhã de uma quinta-feira, a causa de estar ali era achar pauta. Tinha umas ideias de repercussão à cabeça, mas nada muito concreto.

Os leitores do Lado B que me relevem. A editoria propõe dar uma cara boa num emaranhado de notícias ‘ruins’ e revelar o cotidiano com outros olhos, mas e quando você encontra uma colega de escola morando em um barraco? A sensação, que eu não consegui descrever em palavras, veio de outro profissional da imprensa. “É se olhar no espelho invertido”.

Ela tem 26 anos. Enquanto poderia estar formada e ter uma profissão, Misslene Cavarsan, deixou os estudos ainda na 6ª série. O reconhecimento surgiu depois que a pequena “Bê” atendendo ao pedido da equipe chamou pela mãe. A menina, como tantas outras crianças na região, veio em direção à equipe de reportagem. Por curiosidade ou esperar algo, quando lhe foi pedido para que chamasse a mãe, dali mesmo, onde estava gritou “mamãe”. Aquele costume de criança, que de tão pequena, Bê nem se deu conta.

Ela primeiro veio, cumprimentou e foi atender outra filha dentro do que chama de casa. Voltou e perguntou se o fotógrafo tinha participado de um grupo na adolescência e se ela não havia estudado com quem aqui relata. O reconhecimento foi mútuo. Mas partiu dela a iniciativa de relembrar.

Sem constrangimentos pela diferença que a vida lhe proporcionou, ela explicou que morava com o marido e as três meninas há um mês e que as janelas e portas das oportunidades se fecharam muito cedo. “Já tinha filho, aí parei com os estudos”.

De lá para cá, a bagagem são três filhas e a vida num barraco. Ela e o marido deixaram outra área invadida no Nova Campo Grande no início do ano para tentar a vida ali. Coisa de um mês.

“Aqui a gente vive a maioria de doação. Doação até de passe de ônibus, porque é difícil. As casas são todas irregulares, tem umas mil pessoas aqui sem pagar água e luz, porque estamos em área invadida e eu sei que aqui podia ser escola, posto de saúde, polícia. Mas que ponham a gente em uma casa e nós vamos pagar. Todo mundo aqui tem essa esperança, de ir para uma casa”.

Ela é só uma das dezenas de mulheres que deixaram estudo para trás. Que carregam um histórico de família que não merece ser chamada por este nome. É só uma das muitas que só querem uma casa para morar, e se propõe a pagar por isso.

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