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Comportamento

Pai fala pela 1ª vez sobre dor, culpa e saudade de Carol, esquecida em um carro

Paula Maciulevicius | 21/09/2015 06:12
Carolzinha e o cachorro de casa. Um dos maiores apegos da menininha. (Fotos: Arquivo Pessoal)
Carolzinha e o cachorro de casa. Um dos maiores apegos da menininha. (Fotos: Arquivo Pessoal)

A narrativa é repleta de detalhes, desde quantos graus fizeram naquela tarde, na anterior, e também recheada de "e se eu tivesse feito isso". O momento mais trágico que um pai poderia enfrentar ocorreu um dia depois da felicidade do primeiro corte de cabelo de Carolzinha. Com tanta beleza nas pequenas coisas, nada poderia dar errado. Mas a vida surpreendeu naquela quarta-feira.

No automático, o pai que dirigia o carro virou a rua ao invés de ir reto até a escola da filha. Desceu no escritório sem perceber que a menina continuava no carro, dormindo. Só saiu 6h depois, como sempre, no horário de buscar a filha no colégio. Quando abriu o carro, viu que ela continuava ali, esquecida dentro do veículo, inconsciente.

O caso aconteceu em Campo Grande, em 2013, mais precisamente dia 20 de novembro, uma quarta-feira. Carolina tinha 1 ano 3 meses e estava frequentando a escolinha desde julho. A rotina diária da família era sair de casa às 11h50. Com o pai dirigindo, a mãe ficava no trabalho e Carolzinha na escola. Todos os dias. Por conta da agenda lotada no trabalho, o pai cogitou de ficar com a menina no escritório aquele dia, o que também era hábito.

"Mas no automático, eu desci do carro. Ela sempre dormia no caminho. Eu ia cantando. Ela pegou no sono e dormiu, deixei minha mulher no trabalho e fui como se estivesse indo pra levar ela na escola, mas em vez de ir reto, eu virei para o escritório. Era a programação de ficar com ela hoje e eu desci do carro".

A cara do pai, menina tinha um sorriso contagiante.
A cara do pai, menina tinha um sorriso contagiante.

Na cabeça do pai, que pediu para ter o nome preservado, a menina estava na escola. Em determinados momentos da tarde, ele chegou a sentir saudades e se perguntar porque não ficou com ela aquele dia no trabalho. "Chegou 10 minutos antes de pegar ela na escola, eu saí, foi quando eu me deparei com ela no carro. Então foi o caos..."

Carolina estava viva, passando muito mal, mas viva. O Samu foi acionado, o pai correu com a menina para dentro do escritório, passou água no rosto e pediu para que o sócio fosse buscar a mulher no trabalho. "A gente desceu junto na ambulância até a Santa Casa e aí ela ficou internada na UTI de onde não saiu".

A menina foi a primeira filha do casal. A cara do pai, uma criança muito planejada e que transparecia felicidade. Ela chegou depois de 9 anos de casamento dos pais, quando eles viram que era o momento. Primeiro veio a organização financeira e também a estrutura psicológica para receber uma filha. Logo que souberam que era menina, o primeiro presente foi uma vara de pescar, infantil e de florzinhas. Um dos hobbies preferidos do pai.

"Ela foi uma criança muito feliz, trouxe muita alegria para a gente. Era tudo que a gente queria e mais um pouco, assim e ela realizou a gente como pais, como seres humanos", descreve a mãe. A afetividade da pequena transformou Carol em Carolzinha.

Carolina nasceu em agosto de 2012, e um ano depois, tinha se mudado para uma nova casa. Grande, num condomínio de luxo da cidade. Ela tinha um quintal inteiro para brincar. Grama e até um sapo que, mesmos sem conseguir falar toda palavra certinha, arriscava um "apo".

Da casa grande pensada para ela, Carolzinha aproveitou muito, mesmo com pouco tempo de vida.
Da casa grande pensada para ela, Carolzinha aproveitou muito, mesmo com pouco tempo de vida.

Na casa, a piscina havia sido cercada, pensando nela. "A gente se cercou de todos os cuidados possíveis e pensáveis e nunca imaginamos, até pela quantidade de casos que acontecem no Brasil que isso pudesse acontecer dentro da casa da gente. A gente nunca pensa que esse tipo de fatalidade vai te alcançar", diz o pai. E alcançou.

Carolina acordava mais ou menos 8h30 da manhã, brincava com a mãe, almoçava às 11 e quando o pai chegava, ela estava prontinha para ir à escola. Na volta, era só brincadeira entre ela e o pai. "Eu dei muito banho nela, troquei muita fralda dela, muita roupa. A Carolina era minha companheira, minha boneca. Não que os outros pais não façam isso, mas eu tentava ser diferente. Não tinha um dia que a Carolina não chegava da escola que a gente não brincava com ela".

Durante a entrevista, o pai é firme nas palavras. E entrega a culpa que carrega nos ombros cada vez que retoma o que poderia ter feito naquela quarta-feira. "A gente se cerca de todas as seguranças possíveis e mesmo assim, as coisas acontecem... Eu tinha um alarme no meu celular que 12h tocava e perguntava se tinha levado a Carol para a escola. Aquele dia, ele tocou e eu no automático desliguei. Levei ela pra escola e desliguei", pensou. 

O veículo que tinha alarme não tocou em nenhum momento. A escola, que possuía circuito interno de câmeras com acesso no celular dos pais, também não o fez lembrar. Na rotina do pai, eram raríssimos os dias em que ele passava a tarde toda no escritório. "Eu trabalho muito fora, aquele dia eu só saí para buscar ela na escola. Tem um conjunto de circunstâncias, tinha tudo isso e ainda assim, aconteceu..." 

Carolina passou dois dias na UTI. Teve morte cerebral atestada pelos médicos na sexta e o coraçãozinho parou no sábado. A causa da morte foi hipertermia. "As crianças não têm capacidade de suportar o calor como a gente tem. Ela desidratou, foi a temperatura de dentro do carro. Não foi ausência de ar", explica o pai. Aquele dia os termômetros fizeram 32 graus, enquanto no anterior, tinham sido 38, relembra o pai. 

"Eu cheguei no carro e vi todo embaçado, até estranhei e quando eu olhei para trás, o caos estava instalado. Só Deus sabe o que eu passei naquele momento".

Para os pais, Carolzinha vai ter, para sempre, 1 ano e 3 meses.
Para os pais, Carolzinha vai ter, para sempre, 1 ano e 3 meses.

A menina ficou o tempo todo sedada. Depois da morte cerebral, foi levada para uma ala específica onde os médicos diminuíram a medicação. "A gente ficou ali, esperando chegar a hora que o coraçãozinho ia parar e ela parar de respirar. A gente viu ela desligando... Você nunca imagina que isso pode acontecer... " As palavras saem carregadas de lágrimas e o silêncio se instala por minutos.

Nos primeiros momentos de hospital, os pais acreditavam que ela sairia dali viva. Pela força que tinha. Mas com o passar das horas, eles dizem que entregaram nas mãos de Deus, com receio de que sequelas fizessem Carolina sofrer mais ainda.

O pai não se desfez do carro de imediato, por acreditar que não foi ele o culpado pelo que aconteceu e por encarar que, dentro do veículo, ele e a filha passaram mais momentos felizes do que tristes. "Eu levava ela todo dia para a escola. Sempre que tem uma circunstância que remete a alguma coisa ruim, eu tento resgatar as boas". 

Perder um filho é a ordem inversa das coisas. O que a gente espera é enterrar os pais da gente e quando isso se inverte, tudo sai do lugar. O mundo desse pai caiu. "Ela era muito esperada e quando faleceu, nossa vida estava no auge da perfeição. Aí você se pergunta: que Deus é esse? Que te dá tudo e te tira tudo no dia seguinte? Porque nós perdemos tudo", desabafa o casal.

O pai continua dizendo que abriria mão de tudo o que conquistou na vida e só sairia com a roupa do corpo, mas não tem como. "Eu trocaria o resto da vida na cadeia pela vida dela. Eu trocaria a minha pela dela, eu faria qualquer tipo de barganha, mas não existe essa possibilidade, então a gente tem que conviver. E passamos a ter outra visão da vida. Entender que a vida é o dia de hoje. A Carolina teve 1 ano e 3 meses de vida, tem gente que vive aí 100 anos e não viveu o que a Carolina viveu. Eu tentei ser, no limite do que eu podia, um pai muito presente. Abdiquei de muitas coisas para ficar com ela, a gente sentia que nosso espaço ia ser curto com ela".

Um mês depois do episódio, foi aberto inquérito policial para apurar as circunstâncias da morte de Carol. Da delegacia o caso foi para o judiciário, encaminhado ao promotor até chegar ao perdão judicial. "O promotor decidiu por não indiciar e votou pelo perdão judicial, o juiz averbou. O processo foi arquivado, porque a maior pena é aquela de perder o próprio filho", explica o pai.

As fotos de Carolzinha estão presentes nas redes sociais dos pais, pela casa toda, no celular. O sorriso da menina e o carinho no olhar se eternizaram na inocência. "Eu olhava e falava: ela é tão bonitinha, podia ficar para o resto da vida desse jeito e acabou ficando. A imagem dela, a nossa lembrança será sempre de uma criança. Com 80, 90 anos, nós vamos ter uma filha de 1 ano e 3 meses".

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