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Comportamento

Pensionato tradicional da cidade corre risco de fechar por falta de estudantes

Aline Araújo | 04/05/2015 06:12
Fachada da Jamic, nunca mudou, assim como o restante da estrutura.
Fachada da Jamic, nunca mudou, assim como o restante da estrutura.

Um prédio amarelo, construído na região onde Campo Grande surgiu, no bairro mais antigo da cidade, aberto para receber os filhos de imigrantes, corre o risco de fechar sem deixar vestígios. A Casa do Estudante "Jamic", na Ernesto Geisel, no bairro Amambaí, é um dos pensionados mais antigos e importantes para a história da Capital, mas nunca passou por uma reforma. Perdeu o conforto e, com ele, os estudantes, condição primordial para continuar em funcionamento. 

O terreno foi doado pela prefeitura em 1981, primeiro para atender os filhos dos produtores da Jamic (Colônia Agrícola de Imigração Japonesa), na região de Terenos. Em 82, a Associação já tinha erguido a casa com 24 quartos, separado em duas alas, a feminina e a masculina. O lugar tem sala, refeitório e lavanderia. Tudo muito grande, mas já judiado pelo tempo e pela falta de manutenção.

Como a área foi doada apenas para este fim, se não for pensionado, a casa terá de fechar as portas e voltar para as mãos da prefeitura, que poderá fazer qualquer coisa com o prédio, inclusive, demolir. 

Com o tempo, o lugar passou a receber qualquer estudante, independente da descendência. Hoje, dos 18 hóspedes, apenas 3 são orientais. “Com o tempo, a casa acabou perdendo o seu propósito, se tornou inviável e hoje acaba dando prejuízo para a Associação, mas é algo que a gente não queria ver morrer", conta Paulo Okishima, de 50 anos, presidente da Cooperativa Agrícola Mista Várzea Alegre, que administra a casa.

A vontade de continuar em pé é tanta, que ele diz ter tomado uma atitude radical. "Eu até coloquei os meus filhos para morarem lá, para não deixar essa tradição se perder”. 

Placa mostra sinais da história.
Placa mostra sinais da história.

O lugar faz parte da vida de diversos imigrantes japoneses e de seus filhos, que vieram estudar em Campo Grande. Por lá, amizades que duram até hoje começaram na década de 80. Casais se conheceram e formaram família. Muita gente estudou, se formou e carrega as lembranças da época de Jamic no coração.

A produtora rural, Myuki Helena Okishima Hashimoto, 43 anos, que hoje vive em Terenos, é um exemplo. Ela morou na casa dos 10 aos 18 anos, boa parte da adolescência foi vivida no pensionato.

“Eu era tão criança, né. Por um lado foi difícil, você sair de casa cedo e ficar longe dos pais. A gente sentia falta do carinho de casa. Mas também foi bom, porque era bastante gente para brincar e conversar”, lembra.

Não tem como não sentir saudade, garante Myuki, mesmo sem muitos registros. “A gente começa a lembrar e bate uma saudade da mocidade. Mas naquela época a gente não tirava muita foto igual hoje, as recordações ficaram na memória”, conta.

Foi lá que Helena conheceu o marido, Sérgio Hashimoto, de 43 anos. Ele também era da colônia, mas o namoro começou na época do colégio. Primeiro veio a amizade, depois foram 5 anos de namoro, até o casamento que hoje já dura 19 anos.

Dentre as lembranças, uma das mais vivas são os jogos de queimada e tênis de mesa. “A gente aprendeu muita coisa, tinha que lavar roupa, limpar o quarto... Tirando a comida, o resto nós é que fazíamos. É claro que a gente se divertia bastante, mas eu era bem CDF na época, estudava muito, ficava bastante na biblioteca”, lembra.

Paulo lembra do tempo que passou na casa do estudante.
Paulo lembra do tempo que passou na casa do estudante.

A história começou quando a Colônia Jamic, formada por japoneses que deixaram o Japão após a 2ª Guerra Mundial, foi fundada em Terenos, município a 25 quilômetros de Campo Grande. Para que as crianças das famílias da Associação pudessem estudar, surgiu a casa do estudante. Assim, com preço bem acessível, era possível frequentar uma boa escola na Capital.

Paulo hoje é presidente da associação, mas foi morador do pensionato quando criança, de 1985 a 1988. Só saiu para morar no Japão, antes de voltar para trabalhar na Camva. Ele é filho de um dos fundadores na Associação, acompanhou várias fases da casa do Estudante e lembra de alguns detalhes que ainda estão vivos lembrança.

"A gente tinha que acordar às 6h da manhã para fazer ginástica no pátio. Cada quarto tinha uma caixinha de som que avisava que era hora de acordar para fazer exercício, todo dia. A rotina era rígida, tinha a hora do café da manhã, do almoço, do jantar, e o toque de recolher às 22h. Mas a gente se divertia muito também. Tinha muita bagunça, de vez enquanto o pessoal fugia para passear à noite na cidade, são coisas que a gente vai lembrar para sempre”, conta.

O farmaceutico Bioquímico Aires Toshio Kawasoko, de 41 anos, foi morador em dois períodos, em 1993 e também em 97. "Eu lembro que a minha rotina era acordar cedo, ir para o cursinho, voltar, almoçar e estudar, estudar. Nos finais de semana, jogávamos vôlei e às vezes a bola caia no córrego. Tínhamos que descer de escada para pegar! Na época, a Ernesto Geisel ia até o pontilhão da Salgado Filho só", recorda.

Plaquinhas até hoje mostram quem está em casa.
Plaquinhas até hoje mostram quem está em casa.

Outra memória é da correria para lavar as roupas. "Tínhamos que acordar cedo aos sábados, para ocupar primeiro a máquina de lavar (risos). E na época, só tinha uma televisão na sala de jantar onde assistíamos aos jogos do campeonato brasileiro. A maioria torcia para o São Paulo e Corinthians, mas tinha também quem torcia para o Flamengo, Palmeiras e Vasco. Dia de jogo, era sempre uma festa. Apesar da exaltação, havia um respeito mútuo entre as torcidas e nós também tínhamos o nosso time de futebol, que até chegou a ganhar campeonatos dentro da colônia nipônica campo-grandense", conta, com entusiasmo.

As idades dos moradores eram variadas, dos mais novos que cursavam o Colegial, até quem já estavam na faculdade.

Com a lotação máxima, chegaram a morar no prédio cerca de 96 estudantes. Reinaldo Isao mudou-se para casa aos 12 anos e só saiu aos 16. Ele conta que muitas amizades cresceram ali. “Foi um tempo bom, dá saudade. A gente fez muitos amigos. Tinha bagunça, mas também tinha estudo”, comentou.

O tempo passou. Na casa, quase tudo se mantém da mesma forma até hoje. Um quadro com plaquinhas na parede guarda um sistema antigo. Na madeira, o nome da pessoa é colocado dos dois lados, um em preto e o outro em tinta vermelha. Vermelho significa que o morador saiu e preto que ele está em casa. 

Hoje a situação do prédio é triste, com as paredes descascadas e a estrutura precária, o que não permite que o aluguel cobrado, algo em torno de R$ 300,00, seja reajustado e cubra as despesas, ou banque um orçamento para reforma básica. Um custo foi levantado e, segundo Paulo, o valor ficou em torno de R$ 50 mil, algo inviável para a Associação, assim o prédio permanece o mesmo desde 81.

Pensionato tradicional da cidade corre risco de fechar por falta de estudantes
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