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Comportamento

Primogênito de Spipe, Gabura amava tanto a cidade que nem gostava de viajar

Paula Maciulevicius | 26/08/2016 07:10
Os Calarge: João e a mãe Penélope (sentados) e Gabriel, o Gabura e Ivoni Calarge. (Foto: Arquivo Pessoal)
Os Calarge: João e a mãe Penélope (sentados) e Gabriel, o Gabura e Ivoni Calarge. (Foto: Arquivo Pessoal)

De pais libaneses, que chegaram a Campo Grande a cavalo, Gabura nasceu e amou essa cidade, da 14 de Julho ao Shopping Campo Grande. Personagem mais que conhecido, o comerciante transformou suas lojas em pontos de encontro de amigos e políticos. Se recusava a viajar, a desculpa era o medo de andar avião, mas o receio maior, segundo os filhos, era o de ficar "desinformado". Fora daqui ele não saberia, pelas conversas, o que se passava em Campo Grande.

Para o aniversário da cidade, quem conta a história de Gabura é quem herdou do pai o amor pela cidade: os filhos Eduardo e Gabriela. Ele é administrador de empresas, ela, médica pediatra, que foram criados vendo a Campo Grande pelos olhos do pai. 

A família chegou em 1914, vinda de cavalo de Corumbá. Spipe Calarge, o pai, já tinha visitado a região, gostado e voltou com a esposa, Penélope. Foi aqui que nasceu, em 1932, o primogênito do casal: Gabriel Spipe Calarge. A origem do apelido "Gabura", nada tem a ver com a descendência libanesa. Foi um nome dado na época da fanfarra do Colégio Dom Bosco.

Os filhos de Gabura quem contam a história do pai: Gabriela e Eduardo. (Foto: Fernando Antunes)
Os filhos de Gabura quem contam a história do pai: Gabriela e Eduardo. (Foto: Fernando Antunes)

Gabura deu continuidade ao ramo de comércio do pai, a loja "Casa Central", na Rua 14 de Julho. Seu Spipe morreu quando o rapaz tinha 16 anos. Nas mãos dele, o estabelecimento que vendia vários artigos, mudou de nome. Foi para "Gaburas", porque assim que ele se apresentava à cidade que lhe deu essa identidade. E de mercadoria, vendia roupas masculinas.

"Eu até fui atrás uma vez, é algo vindo do japonês, nem ele sabia. Não tinha um motivo assim. Foi na época em que as escolas participavam de fanfarras e ficou tão conhecido, que ninguém sabia que o nome ele era Gabriel", explica o filho, Eduardo Spipe Calarge, de 42 anos. Gabriel era o mais velho dos irmãos, seguido de João Spipe Calarge e Ivoni Calarge, mais tarde, Zahran.

A casa da família Calarge funcionava nos fundos da loja, na 14 próximo da Afonso Pena, onde hoje é uma loja de sapatos, ao lado das Casas Bahia. A mercadoria vinha de viajantes, primeira profissão de Spipe até montar o negócio. "Eram os próprios árabes que traziam e faziam o comércio aqui. Meu avô começou assim, trazendo mercadoria, depois que montou a loja", conta Eduardo.

Na lembrança da irmã, Gabriela, é nítida a imagem de chegar à casa da avó, depois do colégio. "A gente estudava ali no Centro, lembro da minha avó que morou muitos anos lá. Ficávamos ali até a loja fechar", recorda Gabriela Ferreira Calarge Jankaukis, de 43 anos.

Da Afonso Pena até a Maracaju, a rua era dividida entre comércio e moradia de famílias 'concorrentes' e amigas. A rotina de Gabura era sempre a mesma, às 7h abria a loja, mesmo que ainda sozinho. O comércio só funcionava algumas horas depois. Mas ele tinha como lema que o negócio ia para frente, pelo olho e mãos do dono.

Gabura e o irmão João, andando na 14 de Julho, sob os olhos do pai, ao fundo. (Foto: Arquivo Pessoal)
Gabura e o irmão João, andando na 14 de Julho, sob os olhos do pai, ao fundo. (Foto: Arquivo Pessoal)

"Enquanto tivesse cliente, ele estava atendendo. Sábado e domingo também, cansou de abrir e quando tinha desfile, então?", lembram os filhos.

Comunicativo, a história de Gabura se confunde com a própria de Campo Grande. As lojas abertas na 14 e posteriormente no Shopping Campo Grande, eram lugar certo para encontros. "Todo mundo se reunia na loja, ele fazia muitas amizades, tratava todo mundo igual. Podia ser político, governador, o cara que vendia frutas da frente", conta o filho.

Por mais que circulasse entre todas as camadas sociais, Gabura nunca quis ser político. O mais perto que chegou disso foi o cargo de presidente do Rádio Clube, uma de suas grandes paixões. "Ele chegou a ser convidado para entrar na política, mas não. Meu pai dizia que por ter comércio, não podia fazer inimizade. Não podia ir nem para um lado e nem para o outro e como Campo Grande era muito pequena...", explica Gabriela.

No Rádio Clube, foi diretor, vice-presidente e presidente. E também foi lá que conheceu a esposa, Silvia. Os dois se casaram já com "certa idade". Ele passava dos 40, ela tinha 35. Por gostar da boêmia, temia que um casamento lhe tirasse a liberdade de ser o Gatura que todos conheciam. Para se ter uma noção, ele almoçava em casa, mas não podiam contar com a presença à noite. "Ele tinha que jantar na rua. E era Rádio Clube toda a noite", lembra o filho.

Fachada da loja Gaburas, na 14 de Julho.
Fachada da loja Gaburas, na 14 de Julho.

As viagens não lhe pertenciam. Sair de Campo Grande? Raras as ocasiões. Para a formatura da filha em Medicina no Rio de Janeiro, foi apenas para a colação de grau, mesmo às vésperas das festas de fim de ano. Apesar das raízes árabes, também recusou uma ida com a irmã ao Líbano visitar parantes, sob a justificativa de que ficaria muito tempo dentro do avião.

"Ele falava que não ia, senão ficaria desinformado, que iam acontecer coisas e porque ele tinha medo de avião. Isso eu não sei se era desculpa ou não", desconfia Eduardo.

Em 1995, a família fechou a loja do Centro, para manter ativa só a do shopping. E para os altos da Afonso Pena que foram transferidas as reuniões políticas e de amigos, sempre aos sábados, das 11h da manhã até 1h da tarde. "E era assim: juiz, vereador, desembargador, prefeito, prefeito de cidade do interior. Muita gente que chegou em Campo Grande e fez a vida aqui, ele conhecia", descreve a filha.

Fazenda nunca foi o negócio de Gabura, embora a amizade com a família Coelho e a participação em corridas do Jockey Club levassem a essa conclusão. Por hobby, chegou a cirar cavalos. Mas a verdade era que Gabura gostava muito de festa. "Qualquer coisa que tivesse em Campo Grande, ele ia prestigiar", resumem os filhos.

Silvia e Gabura em uma das tantas festas que ele fazia questão de prestigiar.
Silvia e Gabura em uma das tantas festas que ele fazia questão de prestigiar.

Em 2007, a alegria de Gabura se apagou. E a cidade perdeu um de seus maiores defensores. Depois de cinco anos de tratamento de um câncer de intestino, os últimos dois meses de vida foram passados internado, num hospital. Depois da despedida, a loja que perdurava no shopping, também fechou as portas. 

"Ele não passava nem a dor pra gente. Saía da quimioterapia e ia trabalhar, nunca deixou de ir, tanto é que as pessoas nem sabiam", explica o filho. Se Gabura amava Campo Grande? O apelido era quase um sinônimo da cidade. 

"Amava de paixão. Era a melhor cidade do mundo, a gente chegava a contar dos problemas, dizia: 'pai, isso está errado', mas ele 'não, não e não'. Ele não imaginava sair daqui", recordam Eduardo e Gabriela.

Dos cinco netos, Gabura só conheceu os três mais velhos, Maria Eduarda, Pedro e Felipe. As caçulinhas, Marina e Letícia, é quem está descobrindo agora o avô que Campo Grande perdeu.

"Ele tinha 75 anos, teria 85. O que ele gostaria da Campo Grande de hoje? Ele gostava de andar, pedia que eu o levasse de carro nos finais de semana para conhecer os bairros. Dizia: 'para lá eu não conheço muito'. Ele começou a ter essa visão de que a cidade estava crescendo e ele não podia ficar para trás. Ele precisava saber onde ficava o bairro tal, tal e tal. Ele era um apaixonado por Campo Grande", conta Eduardo. 

Os herdeiros da paixão de Gabura pela cidade. Filhos, genro e netos. (Foto: Fernando Antunes)
Os herdeiros da paixão de Gabura pela cidade. Filhos, genro e netos. (Foto: Fernando Antunes)
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