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Comportamento

Quem era Severino? O avô que fez parto de 10 filhos e morreu sem vaga do SUS

Paula Maciulevicius | 20/04/2015 06:12
A carta do SUS só chegou em março, três meses depois que seu Severino morreu. (Foto: Arquivo Pessoal)
A carta do SUS só chegou em março, três meses depois que seu Severino morreu. (Foto: Arquivo Pessoal)

Há um mês, uma carta do SUS chegou ao endereço da sexta filha de seu Severino Barbosa Camilo, no bairro Aero Rancho, em Campo Grande. Nela, o Ministério da Saúde pede ao próprio Severino ou familiares que avaliem a qualidade e as condições do atendimento a ele prestado. A carta só chegou em março. Três meses depois que Severino morreu, aos 87 anos, após ter até de acionar a Justiça para receber um atendimento digno, e contraria tudo o que ele passou nos últimos dias de vida. 

Nordestino, nascido num engenho do estado de Pernambuco, onde a comarca mais perto era Maiaral, morreu em dezembro do ano passado, antes do planejado. Tudo o que queria era mais um Natal. Seu Severino se foi de câncer, mas antes sofreu. E muito. Quando conseguiu ser encaminhado para o hospital indicado ao tratamento, suportou apenas mais dois dias.

Junto com neto, Severino era pernambucano e da vida só sabia o que aprendeu na prática. (Foto: Arquivo Pessoal)
Junto com neto, Severino era pernambucano e da vida só sabia o que aprendeu na prática. (Foto: Arquivo Pessoal)

O questionário contém cinco perguntas e para elas, cinco opções de resposta, entre elas, "se o paciente recomendaria o hospital a um amigo familiar." Seu Severino não recomendaria o que passou a ninguém. Dono de uma história ímpar, quem sempre foi protagonista da própria vida teve suplicar dignidade no fim dela. O câncer já o tinha tomado quase por completo. A doença, escondida da família a pedido dele, o fez sofrer muito. E sofrimento maior foi para a família assistir a desassistência num hospital sem o especialista indicado e ter negada a transferência para a unidade adequada. 

Pai de 10 filhos, partos feitos pelo próprio Severino, ele morreu deixando mais de 100 herdeiros, entre netos e bisnetos. A herança deixada não foi de riqueza material, mas de felicidade. De quem viveu histórias que vão desde dar um filho que estaria fadado a passar fome, até viajar com a família toda num pau de arara em busca de uma vida melhor.

É deste Severino que o SUS quer saber. E quem conta é a sexta filha, dona Neuza Barbosa Camilo, cabeleireira. "A profissão dele era agricultor, mas era apaixonado mesmo pela pescaria. Em 1961, para ser exato, ele veio num pau de arara, você sabe o que é isso? Era um caminhão onde vinham famílias. Viajamos "n" dias, deve ter dado uns 29, 30 dias, para o norte do Mato Grosso".

No caminho, o pau de arara quebrou e foi seu Severino quem emprestou dinheiro ao motorista. Foi sorte ou acaso. Porque quando chegou em Paraíso, a região não fazia, em nada, jus ao nome. Era praticamente fonte de trabalho escravo. Ele percebeu. Era inteligente, mesmo só sabendo escrever as letras que formavam "Severino".

"Ele chegou no homem e explicou que só parou ali por causa do empréstimo, usou essa desculpa, então o cara agradeceu e liberou ele. Foram os 10 filhos em cima de uma tonelada de algodão, amarrados numa corda", conta Neuza. O destino era Campo Grande, seu Severino era um aventureiro nato. Sempre em busca de sobrevivência onde houvesse um rastro dela. Por aqui ele já tinha uma irmã mais velha.

A esposa de Severino morreu em 2003. Mãe dos 10 filhos, dona Maria José Alves da Silva se foi de falência múltipla de órgãos aos 80 anos. Nove anos depois, seu Severino se casou de novo. A nova companheira, segundo descrição das filhas, era uma "senhorinha, japonesa e budista", com ele viveu três anos e 10 meses. Por respeito, seu Severino nunca aceitou morar com a mulher na mesma casa que havia dividido com a esposa. Por isso foi morar com Neuza, uma das filhas, lá no Aero Rancho. "Até os 84 anos ele não sentia uma dor de cabeça, se dizia super bem, cuidava de 1 hectare de plantação, colhia..."

Em maio do ano passado, ao passar mal, seu Severino foi levado para a Santa Casa, disseram às filhas que se tratava de uma anemia profunda. Seu Severino chegou a ser operado, mas só lhe abriram e fecharam. A família sustenta que recebeu a notícia de que era uma úlcera. "Papai nunca ficou nem de bermuda na frente dos filhos e fez disso um segredo não queria que os filhos soubessem".

O segredo guardado por ele era o câncer. Numa tomografia computadorizada, não deu mais para esconder. A família soube, mas já não dava mais tempo de fazer nada. "O câncer tomou conta. Isso que o médico falou. Deram 10 dias de vida, ele viveu sete", narra a filha.

Sexta filha, Neuza, é quem conta trajetória do paciente do SUS. (Foto: Fernando Antunes)
Sexta filha, Neuza, é quem conta trajetória do paciente do SUS. (Foto: Fernando Antunes)

Depois de entrar na Justiça, a família conseguiu transferi-lo da Santa Casa para o Hospital do Câncer. Lá, chegou às 10h da manhã do domingo e de lá saiu para ser enterrado às 13h de terça. "Eu ainda perguntei: 'o senhor tem alguma coisa para falar? Ele só riu. Não me falou uma palavra. Papai era eletrizante, ficar acamado não era para ele. Acho que ele não falou para nós, para não causar sofrimento, mas nós podíamos ter feito alguma coisa", lamenta até hoje Neuza.

O seu Severino, paciente do SUS, fez o parto dos filhos em meio ao mato. Neuza, por exemplo, nasceu num trieiro, quando o casal caminhava de um engenho a outro. "A primeira roupa que eu vi, foi do meu pai".

Quando Severino se casou, o irmão se tornou marido da irmã de dona Maria José. Juntos, eles fizeram um pacto, de que quem morresse, assumiria a família do outro. "O irmão de papai morreu aos 35 anos, deixando 18 filhos e meu pai, que estava na época morando em São Paulo e tinha dinheiro para comprar, não sei quantas cabeças de gado, ele foi atrás dessa família".

Dos 18, ele trouxe a viúva e 14 dos filhos. Um tempo depois eles voltaram para Pernambuco. Mas pelo menos Severino cumpriu sua palavra. "Ele foi muito feliz do jeito dele. Eu acho que ele era uma criança, não se apegava a nada. Vivia com um salário mínimo e mesmo assim comeu tudo o que quis, viajou para onde quis. Era um homem de um coração gigante".

Pescador por talento ou dom, frequentava tanto um pesqueiro que o dono permitiu que ali ele fizesse uma casa, com quarto e cozinha e de lá que ele trazia os peixes que abarrotavam o freezer.

Uma das grandes dores de seu Severino, talvez maior que o câncer que o levou, tenha sido dar um filho. Quando nasceu um, próximo a casa do gerente de um dos engenhos, o casal pediu dizendo que não poderiam ter filhos, mas que ao menino deles não faltaria nada.

"Ele deu. Até hoje não se sabe o que foi feito desse filho". A confissão saiu num dia que seu Severino havia tomado um pouquinho a mais de pinga. Era algo guardado a sete chaves e que saiu em meio às lágrimas.

Por dois anos e meio, enquanto a filha Neuza estava num acampamento sem terra, seu Severino acompanhou. Esteve lá, firme e forte.

Seu Severino morreu sem querer. Morreu escondendo a causa de sua morte. Não deixou que o salvassem, mas nem por isso deixou de ser um pai maravilhoso. "Esse foi o nosso pai. Ele teve 35 irmãos. E apesar de ser totalmente sem cultura, ele passou muita coisa para os filhos. Papai não queria morrer, ele nunca pensou na morte. Morreu, porque o corpo não resistiu".

"Ele foi um pai maravilhoso. Ele nos deu a honra de ficar ao lado dele por 87 anos".

Para o SUS, seu Severino Barbosa Camilo era um paciente numerado. A neta, que está com a carta em mãos na foto, ainda não respondeu. Para a família, ainda não inventaram bolinha que contemple a resposta mais adequada para esta vida que se foi, sem querer ir.

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