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Comportamento

Rainhas dos encaixes, secretárias de médicos e a vida entre patrão e pacientes

Paula Maciulevicius | 05/09/2014 06:51
A senhora de cabelos curtinhos e encaracolados e de óculos trabalha "só" há 51 anos com o pediatra Benedito Anache. (Foto: Marcos Ermínio)
A senhora de cabelos curtinhos e encaracolados e de óculos trabalha "só" há 51 anos com o pediatra Benedito Anache. (Foto: Marcos Ermínio)

A fala é mansa, pausada, como quem espera que pelas sílabas saia a paciência e carinho que ela tem com os pequenos pacientes. A senhora de óculos, cabelos curtinhos e encaracolados, sorri até na hora de atender ao telefone.

Ela fala para crianças até quando o diálogo é entre secretária e médico. O jeitinho doce é capaz de acalmar o choro e dar alívio à mãe que liga pedindo um encaixe, nunca por ela negado. Delza Alves de Lima não tem filhos, mas fez da sala de espera sua casa e dos pacientes seus filhos, que hoje lhe dão netos e até bisnetos.

Dos 66 anos de vida, 51, isso mesmo, meio século é dedicado ao mesmo consultório. Delza acompanhou o pediatra Benedito Anache, um dos mais velhos médicos ainda na ativa, por três endereços e centenas de choros de criança.

"Eu entrei com 15 anos. Naquele tempo não tinha isso de criança não poder trabalhar. A gente tinha era que se sustentar", lembra. O "consultório médico bom dia, boa tarde" sempre se referiu ao Dr. Benê, o que lhe rendeu conhecer muitas famílias. "É quase Campo Grande toda. Muitas pessoas que eram pacientes, agora vem com os filhos", diz.

(Foto: Marcos Ermínio)
(Foto: Marcos Ermínio)

Delza não é de tudo avessa à entrevistas, conversa fácil, desde que não perceba que está passando por uma "sabatina". Para que ela compartilhasse sua história de vida na sala de espera, foi preciso que as mães que aguardavam atendimento a convencessem. "Delza, você tem que falar, é uma homenagem a você". "Você merece, você sempre foi solícita, já são anos, você me atendia criança" e por aí vai. Com a plateia pedindo, ela ainda tentou resistir. "Olha, se eu sou famosa assim, avisa que essa a Delza vai ficar devendo", brincou. No fim das contas, ela se abriu.

"Acho que a gente, sabe, acaba se acostumando e vai dando certo", diz sobre o tempo de serviço. Segundo as mães, não precisa nem ligar chorando para ouvir o horário de encaixe proposto por ela. "Eu sempre encaixo, eu tenho dó da mãe e do filho doente", relata.

A média de pacientes diários recebidos por Delza é de 25. O atendimento de segunda a sexta começa 9h e só termina quando o último pequenino vai embora e ninguém chega até que eles fechem o portão. "Se tiver saindo e chegar paciente, a gente fica".

A sala de casa sempre foi o consultório, de sofá com estofado preto, típico das recepções de consultórios, Delza não tem televisão, mas isso nunca foi incômodo. O barulho para distração vem do telefone, do choro, da correria e das risadas de crianças.

"Para o doutor eu virei 'móveis e utensílios', sabe? A mesa, por exemplo, tem que ter uma mesa, porque faz parte da vida". A relação se resume em uma única palavra: essencial. "Aqui para mim, sem a Delza, eu fico perdido. Não consigo encontrar ninguém para substituí-la nem nas férias. Quando ela tira, a pessoa fica uma semana acompanhando, ver como ela faz as fichas, como ela atende. Foram raríssimas as vezes que ela teve atrito com paciente. Se tem e vem para mim, ela quem sempre tem razão. Eu conheço ela há muito tempo, é a minha fiel escudeira". As palavras saem em tom de agradecimento do patrão, o médico Benedito Anache, de 78 anos.

Como nem Delza e nem o pediatra Benê tem planos de se aposentar, o consultório continuará aberto, "Acho que tão cedo ele não se aposenta. Ele ama o que faz e eu também".

De batom rosa pink combinando com a blusa, a diferença de Zezé não está no tempo de serviço e sim na forma de trabalhar.  (Foto: Marcos Ermínio)
De batom rosa pink combinando com a blusa, a diferença de Zezé não está no tempo de serviço e sim na forma de trabalhar. (Foto: Marcos Ermínio)

Com bem menos tempo, mas disposição para chegar até as bodas de ouro, Zezé é outra figura entre as secretárias de consultório médico da cidade. O nome mesmo é Maria José Barbosa, que só é falado na hora de se identificar ao telefone. Há 16 anos ela se mudou, junto com as pacientes, de médico e de consultório, depois que o primeiro chefe deixou de clinicar. Da última década e meia para cá, ela se dedica às gestantes do ginecologista Wilson Ayach.

Sorridente, de batom rosa pink combinando com o tom da blusa em detalhes de oncinha, a diferença dela não está no tempo de serviço e sim na forma de trabalhar. De coração mole, Zezé é dessas difíceis de topar na linha de frente dos consultórios, ela encaixa todo mundo. "Às vezes ele fala Zezé você quer me matar? Mas é brincando", conta. 

A entrevista só foi possível de ser feita no dia em que o médico não está no consultório e ainda assim o telefone toca com uma frequência de deixar qualquer uma maluca. "Aqui é assim, de três em três minutos, parece call center. E eu atendo o telefone, às pacientes e o dr", relata.

Para dar certo na função, Zezé acredita que o primeiro item é gostar de pessoas. Gostando de gente, conversar, dar carinho e atenção já é automático. "Eu acho que a recepção é o cartão de visitas do médico. Às vezes falam que eu paparico demais, mas a paciente chega aqui fragilizada, tem que ter calor humano e eu também não deixa ela quietinha não, eu vou, interajo", explica.

A sala de espera, assim como a uniforme, é decidida por ela e a colega, secretária de outros dois médicos no mesmo consultório, Marisa Dias. A blusa que usa, por exemplo, é o modelo Outono/Inverno. Logo logo deve chegar a estampa do Verão.

"Para estar aqui tem que sorrir, eu não sou cão de guarda não. Sabe o que é cão de guarda? Aquelas secretárias que não deixam você passar pelo médico, como se elas fossem as donas. Não, aqui eu procuro organizar e eu tenho que filtrar, mas eu dou liberdade, eu encaixo, eu passo recado, deixo entrar", brinca. 

Zezé chega a ligar para pacientes para avisar que a vez está chegando, isso para que elas não esperem ali quando não podem. "Este consultório tem muita história, bolsa já estourou aqui. Tem pessoas que já ganharam as filhas e agora elas que vem, mocinhas. Ele fala ê Zezé, nós estamos ficando velhos". 

O carinho com as pacientes é o reflexo do sentimento que tem para com o patrão. "O dr. Wilson para mim é um irmão, é sistemático, mas é muito querido. Eu já tive proposta até para chefiar uma clínica, mas não, eu sou fiel. Não é pelo que eu ganho, mas ele não esquece do meu aniversário", exemplifica.

E quando nasce um bebê, o presente que chega ao consultório não é só para o médico. Zezé coleciona bem-nascido, perfumes, chocolates e até porco já ganhou. 

Do outro lado, Wilson Ayach concorda que secretária há 16 anos, Zezé é sua fiel escudeira. "Eu costumo dizer que eu trabalho para ela. É uma relação de confiança, de respeito". "Ele diz que eu que mando nele", finaliza Zezé aos risos.

De coração mole, Zezé é dessas difíceis de topar na linha de frente dos consultórios, ela encaixa todo mundo.  (Foto: Marcos Ermínio)
De coração mole, Zezé é dessas difíceis de topar na linha de frente dos consultórios, ela encaixa todo mundo. (Foto: Marcos Ermínio)
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